Título: Falhas do governo não são econômicas
Autor: Wanderley Guilherme
Fonte: Valor Econômico, 07/04/2005, Política, p. B14

A inflação oscila com tendência de baixa. A taxa de emprego oscila com tendência de alta. A renda das famílias cresce. A produção industrial se acelera. A da agricultura, idem. As exportações batem recordes sucessivos, incluindo bens manufaturados e serviços. Ao que parece, a taxa de investimento foi a maior desde 1999, com ênfase nos bens de capital. A participação da dívida externa na riqueza nacional reduz-se paulatinamente. A dívida pública interna continua preocupante, mas não se anunciam catástrofes. As empresas programam expansão dos negócios. Se não me escapou algo, escasseiam notícias negativas que sejam novas. Estradas, portos, comunicações e energia são problemas pendentes. Vem de longe. Não aguardam muito tempo antes de prejudicar os demais indicadores. Já contaminam, aliás, em proporção difícil de contabilizar. À parte o que continua péssimo, ou ruim no melhor dos casos, em que indicadores relevantes o desempenho atual é inferior ao da década passada? Quase que diariamente informam-se descobertas de fraudes, desvios, roubos. Em sua vasta maioria envolvendo políticas básicas do Estado - saúde, educação, previdência -, a incorporação econômico-territorial do país (terras de fronteira, assentamentos agrários), complicações com o fisco, e os obstáculos à implantação de novos projetos sociais associados ao guarda chuva do programa Fome Zero. Boa parte dos problemas era por demais conhecida, mas só agora o Estado começou a aparelhar-se para dar-lhes combate com alguma chance de sucesso. A Polícia Federal, em particular, vem revelando surpreendente eficiência tendo em vista sua histórica omissão. A inauguração de programas de grande porte como o Bolsa Família está permitindo ao governo e à população fazerem uma idéia da extensão em que o Estado está despreparado para desempenhar tarefas elementares. Antes, a modéstia dos programas de governo escondia a gradativa incapacidade operacional do Estado, acelerada pela contabilidade de armazém embutida na estatofobia do vendaval Fernando Collor. No certeiro diagnóstico de um colega, não é que os suecos sejam mais inclinados ao suicídio do que os brasileiros, é que eles possuem melhores estatísticas. Começamos a acumular estatísticas suecas sobre o desarranjo do Estado por obra e graça das políticas sociais. Empreguinho pra cá, empreguinho pra lá, isso é pinto diante da devastação de pessoal qualificado produzida durante a década de 90. O Estado brasileiro, hoje, está gordo é de porteiros, ascensoristas e atendentes. Se não triplicar o gasto com pessoal no pessoal certo vai continuar capenga, disputando soberania com os seqüestradores da Constituição.

Federação e Constituição é que estão mal servidas

Duas políticas essenciais estão sendo muito mal servidas pelo atual governo: a constitucional e a federativa. Sobra amadorismo na relação entre o Executivo e o Legislativo, justamente porque o governo parece reduzi-la a uma contagem de votos de deputados e senadores. Uma coalizão de governo bem articulada se expressa em números de votos e em uma pauta de interdições. A inviabilidade de uma duradoura coalizão governativa entre o PSDB e o PT aparece quando se observa que o PT jamais concordaria com processos de privatização segundo os critérios aceitáveis pelo PSDB e que este dificilmente apoiaria ou virá a apoiar mecanismos de distribuição de renda de soma zero, isto é, o tanto que as classes baixas venham a ganhar equivale ao que as classes ricas perderão. No estilo tucano de política a distribuição de renda deve resultar de repartição mais eqüitativa do crescimento do produto econômico futuro, não de significativa repartição do produto atual. As implicações constitucionais desse fosso parecem escapar ao comando petista. O desencontro federativo resulta da dificuldade que o grupo hegemônico do PT revela em absorver uma perspectiva nacional. É um grupo politicamente estadual com voracidade centralizadora. As grandes marchas que Lula terá feito durante sua vida de candidato solidificaram a visão de um Brasil que ele deseja superar e não creio em qualquer possibilidade de que venha a trair essa convicção fundamental. Este é o enorme obstáculo que os conservadores econômicos e reacionários de classe média encontrarão na tarefa de desconstrui-lo em que se empenham. Mas Lula, estrategicamente, não transcende o sintoma e o cacoete do ABC. Nem os do primeiro time, cuja alma não abandona os subúrbios de São Paulo.