Título: A renda cresce e se concentra
Autor: Maria Clara R. M. do Prado
Fonte: Valor Econômico, 07/04/2005, Opinião, p. A17

O relatório sobre Financiamento do Desenvolvimento Global, divulgado ontem pelo Banco Mundial, trouxe um dado auspicioso para a América-Latina e do Caribe: crescimento de 5,7% do PIB em 2004, muito além das mais otimistas previsões. Isso, grosso modo, representa expansão de cerca de 4% do PIB per capita, um resultado digno de ser festejado pela população de uma região do planeta cuja renda, em média, manteve-se praticamente estagnada nos anos anteriores. O significativo aumento do produto latino-americano no ano passado - como, aliás, ocorreu em outras partes do mundo - deve ser olhado com certa cautela. Seria, nada mais, nada menos, do que o simples reflexo de uma realidade econômica internacional extremamente favorável. Como de hábito, a região ecoou internamente aquilo que aconteceu do lado de fora, no resto do mundo. Os antigos economistas cepalinos diriam que isso é um sintoma da tradicional "dependência externa" a que estariam condenados os países da região. Se vamos continuar assim, e por quanto tempo, não são aspectos a serem tratados aqui. Requerem pesquisas de estudiosos qualificados à luz dos acontecimentos econômicos, sociais e políticos dos últimos anos. Profundas reformas estruturais foram implementadas em muitos países da região na década de 90, envolvendo privatizações, mudanças no sistema financeiro, reforma tributária, a abertura comercial e a abertura da conta de capital do balanço de pagamentos. Houve avanços, embora lentos, em alguns indicadores sociais. O processo de globalização inseriu os latinos inexoravelmente no mundo mas, com tudo isso, a região continua liderando o ranking com a pior distribuição de renda do planeta. Dentro dela, o Brasil mantém-se como o líder dos líderes nesse quesito, e isso não parece surpreender e nem nos deixa enrubescidos. No entanto, e a despeito da carência de estudos e avaliações, fica sempre a sensação de que essa desigualdade ajuda a explicar boa parte das nossas mazelas, a começar pelo incipiente mercado interno, malgrado o volume populacional, e a baixa taxa de poupança. A rigor, a renda ficou ainda mais concentrada na maioria dos países da América Latina. A Cepal, ligada à ONU, mostra isso na última edição do Panorama Social, divulgado em dezembro passado. O campeão, como já se ressaltou, é o Brasil. Permaneceu, em 2002, no mesmo grupo de mais alta desigualdade em que se encontrava em 1990, só que em situação pior. Medido pelo índice Gini, o mais popular para a avaliação do nível da distribuição de renda (varia de 0 a 1, sendo que 0 equivale a eqüidade absoluta e 1 a iniqüidade absoluta), o Brasil pulou de 0,627 em 1990 para o índice 0,639 em 2002. Nesse período, só caiu em 1994, quando o Plano Real colocou renda no bolso dos mais pobres, reduzindo momentaneamente a desigualdade e puxando o índice para 0,621. Dali em diante, o índice voltou a crescer. A Argentina, que em 1990, era classificada como país de nível médio de desigualdade na região, piorou dois patamares em doze anos. Em 2002 já dividia com o Brasil o primeiro lugar dos mais desiguais, com índice Gini de 0,590. Tem sido rápida e extremamente visível a concentração de renda nos últimos anos na Argentina devido à tremenda depauperação do país desde o final da década de 90. Nicarágua, Colômbia, Bolívia, Chile, República Dominicana, Guatemala, El Salvador e Peru são países que em 2002 acusavam alta desigualdade de renda. Naquele período de doze anos, só dois países melhoraram: México e Panamá, que caíram do nível alto para o nível médio de distribuição, enquanto que o único considerado em 2002 pela Cepal como país de baixa desigualdade era o Uruguai. O quadro fica ainda mais sério quando se observa que boa parte da população na região continua vivendo em situação absolutamente precária.

Há evidências de que as reformas estruturais da última década contribuíram para a piora dos níveis de pobreza da América Latina

O crescimento econômico verificado em 2004 deve ter tirado cerca de quatro milhões de latinos da condição de pobreza com relação ao ano anterior, mas isso é pouco para a região. Com certeza, o aumento de 5,7% do PIB ajudou a diminuir a incidência da pobreza, mas em nada deve ter aliviado o péssimo índice de distribuição de renda. Só para se ter uma idéia de grandeza, em 2000 a região contava com 207 milhões de pobres (ou 42,5% de toda a população da área) e com 88,4 milhões de indigentes (ou 18% da população). A Cepal qualifica de pobres as pessoas cujo rendimento seja inferior ao mínimo necessário para a satisfação das necessidades essenciais. Isso varia em função do custo de vida de cada lugar e da taxa de câmbio da moeda nacional face ao dólar norte-americano. A média da linha da pobreza entre 2001 e 2003 no México, por exemplo, era de US$ 94 por mês na zona rural e US$ 150 por mês na zona urbana. Há evidências de que as reformas empreendidas ao longo da última década foram responsáveis pela piora nos níveis da pobreza na região e pelo agravamento, em geral, do quadro de iniqüidade da renda. O economista Jorge Saba Arbache, doutor pela Universidade de Kent, na Inglaterra, e professor da Universidade de Brasília, se alinha com aquela tese. Acha que as reformas não poderiam ter sido implementadas sem que se adotassem, paralelamente, políticas públicas de "salvaguarda" para a faixa da população que estava justamente menos preparada para enfrentar os efeitos das mudanças. A questão agora é saber se a piora ocorrida no nível da pobreza e na distribuição de renda será daqui para frente revertida. Ou seja, se já terá passado o pior do efeito das políticas chamadas de "liberalizantes" sobre a população de mais baixa renda. Se a resposta for positiva, tanto melhor. Estará a região, afinal, colhendo os frutos benéficos das reformas depois de tantos sacrifícios. Se for negativa, o resultado da deterioração será dramático. De todo o modo, os governos da região terão de rebolar se quiserem que os países latinos cheguem a 2015 dentro da meta traçada pela ONU para o milênio, de reduzir à metade o percentual de pessoas com renda inferior a US$ 1 ao dia, tomando por base a realidade observada em 1990. Para isso, o PIB da região terá de crescer ao ano, em média, ao longo dos próximos dez anos, o mesmo tanto que cresceu em 2004.