Título: No sertão, uma legião de esquecidos
Autor: Chico Santos
Fonte: Valor Econômico, 07/04/2005, Especial, p. A18
Os esquecidos do progresso e da riqueza estão em toda parte do sertão nordestino, independente da abundância de água. Em uma pequena colina espremida entre as águas do Castanhão, maior açude do país (6,7 bilhões de metros cúbicos), e um novíssimo trecho da BR-116 (o antigo ficou sob as águas do açude), uma pequena casa sem reboco abriga uma família que vive sem luz, geladeira e televisão e que depende da chuva ou de carro-pipa para beber. "A água do açude dá dor de barriga, tem muito mato verde no fundo", justifica Raimunda Erundina Araújo, 62, que mora na casa de quatro cômodos com o irmão Francisco Araújo, 5, e com um dos dez filhos, Arimatéia Araújo, 27. A casa fica entre as cidades de Jaguaribe e Nova Jaguaribara. Ela era o centro de uma antiga roça desapropriada por R$ 30 mil para a construção do Castanhão, inaugurado em 2003. "O terreno era grande, tinha muitas tarefas (unidade de área rural que corresponde a, aproximadamente, um terço de hectare), tinha até uma nascente", conta dona Raimunda. Como a roça tinha muitos herdeiros, Raimunda diz que a parte que lhe coube não deu para comprar uma nova, nem mesmo em Nova Jaguaribara, a cidade construída para abrigar os moradores da hoje submersa Jaguaribara. As notícias do mundo chegam pelo rádio de pilhas e pelo ônibus de Jaguaribe. Nos fins de semana sempre um ou mais filhos de Raimunda vão visitá-los. Há uma cisterna de 20 mil litros feita por uma frente de trabalho de emergência, mas está seca. "Aqui não chove desde janeiro do ano passado", diz Arimatéia, que estudou apenas até a 2ª série do primeiro grau. Do que vivem? "Da aposentadoria (Funrural) e da venda do leite das vaquinhas", diz Raimunda, que, por opção, fica ali mesmo se o Departamento Nacional de de Obras Contra as Secas (DNOCS), dono das terras, deixar. "Isso aqui já foi mais esquisito. Agora tem ônibus na porta. Antes a estrada passava a oito quilômetros", compara Arimatéia. O povoado de Pedra Emendada, município de Umari, a mais de 400 km de Fortaleza, também fica na margem da BR-116 e também tem ônibus na porta, mas água é um bem escasso e exige coragem para ser consumida. Com a estiagem, o pequeno açude local praticamente secou. A água que sobrou é malcheirosa e só serve para os bichos. A população cavou um poço no leito seco do açude e se abastece com ela enquanto aguarda a promessa da prefeitura de fazer um poço profundo para acabar de uma vez com a carência. "Já tem até os canos para distribuir a água do poço, mas até agora, nada", lamenta Raimundo Leite da Silva, 36, enquanto apanha a água turva do poço provisório e a despeja em dois barris de borracha pendurados na cangalha de um jegue. "Aqui muita gente tem dor de barriga por causa da água. A gente bebe porque não tem outra", conforma-se Damiana Leite de Souza, 53 anos, 14 filhos vivos (de 20 que nasceram) e 17 netos, enquanto pega água com uma lata. Quem tem filtro em casa, filtra a água de beber. "Água para cozinhar não filtra não. Já vai ser cozida, né", justifica Raimundo com uma lógica incontestável. E a água do São Francisco? "Vai passar longe, não vem aqui para a gente não". No povoado de Mosquito, município de Casa Nova, na Bahia, água não é problema, mas a pobreza, sim. Mosquito, com 700 habitantes, fica na margem esquerda do lago de Sobradinho, próximo a grandes empreendimentos agrícolas, como os vinhedos do Carrefour e da Vinícola Miolo. Durval da Silva, 36, tem mulher e quatro filhos e vive do salário mínimo da aposentadoria por invalidez. "Aqui, pouca gente tem roça. Um bocado de gente tem vontade de trabalhar com irrigação, mas negócio de projeto é só para quem tem condições", explica na sua linguagem peculiar. Segundo Francisco de Assis Souza, presidente da Associação de Moradores de Mosquito, "só quatro ou cinco famílias" do lugar trabalham com roça própria. A maioria presta serviços temporários para as fazendas de frutas ganhando salário mínimo. "Aqui tem muita família que gostaria de trabalhar com a terra, mas não há terra disponível. Seria muito bom se houvesse investimento em distribuição", reclama Souza. A pesca no lago complementa a dieta dos moradores de Mosquito, onde a escola só vai até o 4º ano primário e onde o posto de saúde, segundo os moradores, raramente tem médico. E há ainda o medo dos assaltos que nos últimos tempos assolam a região. O povoado fica a três quilômetros da esburacada estrada de asfalto que liga Casa Nova a Petrolina. "A gente perde a bicicleta, perde tudo", diz a moradora Idália da Purificação.