Título: João Paulo II colocou ordem nas finanças do Vaticano
Autor: Humberto Saccomandi
Fonte: Valor Econômico, 08/04/2005, Internacional, p. A11

Entre seus muitos méritos, João Paulo II passará para a história como o papa que colocou ordem nas conturbadas finanças do Vaticano. Foi um processo foi longo e difícil. Apesar disso, a Igreja ainda está longe de ter uma contabilidade transparente. João Paulo II foi atropelado por problemas financeiros logo no início de seu mandato, em 1978. Em crise no início dos anos 80, o Banco Ambrosiano, que tinha o Banco do Vaticano como um de seus acionistas, quebrou em 1982. O caso ganhou contornos dramáticos com a morte - muitos dizem assassinato - de Roberto Calvi, presidente do Ambrosiano, encontrado enforcado sob uma ponte em Londres. As investigações apontaram uma série de ligações, mal explicadas até hoje, entre o Banco Ambrosiano, o Vaticano, a loja maçônica P2 e até a máfia italiana, em operações de lavagem de dinheiro. O Vaticano nunca admitiu nenhuma culpa, mas concordou em pagar US$ 244 milhões a credores do Ambrosiano. O caso levou ao afastamento do arcebispo americano Paul Marcinkus, diretor entre 1971 e 1989 do Instituto para as Obras Religiosas (IOR, mais conhecido como Banco do Vaticano). Devido a esses escândalos, em meados dos anos 80 católicos dos EUA e da Alemanha, os países que mais contribuem financeiramente para a Igreja, ameaçaram interromper essa contribuição caso não houvesse uma reforma na gestão financeira. Houve resistência de setores do Vaticano, mas lentamente a mudança ocorreu. Os principais responsável por essa reforma foram o cardeal americano Edmund Szoka, de Detroit, que em 1990 assumiu a Prefeitura dos Assuntos Econômicos da Santa Sé, e o banqueiro italiano Angelo Caloia, que no mesmo ano assume o Banco do Vaticano. A partir de 1987, a Prefeitura passou a fiscalizar a prestação de contas de todas as entidades do Vaticano, exceto o Banco do Vaticano e o Óbolo de São Pedro (donativos de fiéis diretamente para obras da Igreja). Mas à época, o Vaticano tinha três contadores e a contabilidade era feita em livros. Não havia computadores. A reforma determinou que fossem separados o orçamento e as contas da diocese de Roma (desde 1988), do Estado do Vaticano, do Banco do Vaticano, a Cúria Romana, do Óbolo de S. Pedro, da Basílica de S. Pedro e de uma série de outras operações autônomas. As principais fontes de receita do Vaticano são as contribuições das Igrejas (lideradas por EUA e Alemanha), os donativos diretos dos fiéis (os americanos são os que mais contribuem), as receitas de negócios (comércio e serviços) no Estado do Vaticano e as aplicações financeiras do capital acumulado. O dinheiro arrecadado é administrado pelo Banco do Vaticano e pela Administração do Patrimônio da Sé Apostólica (Apsa), que liberam as verbas para cada entidade. Além disso, algumas entidades têm aplicações próprias, que elas mesmos administram. "As finanças de cada entidade do Vaticano são complexas, e seus inter-relacionamentos tornam a situação financeira ainda mais complexa", diz o padre americano Thomas J. Reese em seu livro "O Vaticano por Dentro". Como resultado do choque de capitalismo ordenado pelo papa e executado pelo cardeal Szoka e pelo banqueiro Caloia, o Vaticano teve em 1994 superávit operacional, pela primeira vez em 22 anos. Essa situação perdurou até 2001, quando o Vaticano voltou a ter um déficit, de US$ 3,06 milhões. Em 2002 também houve déficit. Os últimos dados divulgados, relativos a 2003, mostram déficit de 9,6 milhões de euros, sobre receita de 204 milhões de euros (o Vaticano, apesar de não fazer parte da União Européia, adota o euro, moeda oficial da Itália). A piora na situação fiscal nos últimos anos foi atribuída a ganhos menores no mercado financeiro. Estima-se que o Vaticano tenha ao menos US$ 1 bilhão em aplicações (esse dado não é divulgado, e há estimativas maiores). Nos anos 90, parte disso teria sido aplicado no mercado de ações, o que garantiu bom rendimento. Com a queda das Bolsas, a partir de 2001, as aplicações teriam sido transferidas para títulos do Tesouro italiano, com rendimento bem inferior. "Os administradores do Vaticano, da mesma forma que muitas outras pessoas, ficaram acostumados a equilibrar o orçamento com os grandes lucros obtidos no mercado", disse à agência de notícias "Bloomberg" Joseph Harris, contador de Seattle (EUA), que faz uma análise anual das finanças do Vaticano para as dioceses americanas. Além da perda de receita financeira, outra ameaça que paira sobre a economia do Vaticano são os pedidos milionários de indenização contra dioceses nos EUA por vítimas de abusos sexuais cometidos por padres. Apesar de o Vaticano não se responsabilizar por obrigações das dioceses nesses casos de pedofilia, há o risco de caírem as contribuições da Igreja e de católicos americanos ao Vaticano. Apesar de ter melhorado sua situação financeira, o Vaticano não adotou uma contabilidade transparente. O balanço fiscal é divulgado com atraso, e o resultado de vários entidades e aplicações não são conhecidos do público. Já houve muitas insinuações de contas secretas, que teriam, por exemplo, ajudado a financiar o movimento sindical Solidariedade, na Polônia. O Vaticano defende sua contabilidade e combate a crença disseminada da riqueza da Igreja. "Quando cheguei ao Vaticano, havia muita conversa sobre a grande riqueza da Igreja. Trabalhei muito para desfazer esse mito. A Santa Sé teve déficit de 1970 a 1992. Ela atua com um orçamento muito apertado. A Santa Sé tem [hoje] mais transparência que muitas empresas", disse o cardeal Szoka em entrevista à revista "BusinessWeek". O incalculável patrimônio da Igreja (obras de arte como a Pietà, de Michelangelo, e a Basílica de S. Pedro, entre outros) é considerado invendável e contabilizado ao valor de 1 euro no balanço.