Título: Laboratórios enfrentam uma overdose de notícias ruins
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 08/04/2005, Empresas &, p. B10

Deu tudo terrivelmente errado para os maiores grupos farmacêuticos do mundo. A retirada do mercado de medicamentos de grandes vendagens, a crescente suspeita dos consumidores em relação aos padrões éticos das farmacêuticas e discussões com as autoridades reguladoras e clientes abalaram o que até recentemente era um dos setores mais "limpos". Alguns observadores questionam se um modelo de negócios que já foi capaz de produzir lucros enormes não foi irremediavelmente danificado. O setor luta para aceitar uma mudança de ambiente em seu maior e mais lucrativo mercado, os Estados Unidos. O que acontece nos EUA é essencial para o futuro de todas as maiores companhias farmacêuticas. Lá, os preços são estabelecidos principalmente pelo mercado, e não pelos governos como na Europa e grande parte do resto do mundo. É lá também que as farmacêuticas optaram por estabelecer parte de suas operações de pesquisa. Os EUA são de longe o país que mais gasta com cuidados com a saúde em geral no mundo - surpreendentes US$ 1,8 trilhão, ou mais de 15% do PIB, somente no ano passado - e com produtos farmacêuticos em particular. Em 2004, os EUA responderam por mais de 40% do mercado farmacêutico mundial, de US$ 550 bilhões, segundo a IMS Health. Além disso, os preços de muitos medicamentos de marca podem ser significativamente maior nos EUA do que em outros países. E é nos EUA que as companhias estão enfrentando as críticas mais duras. Elas estão sendo acusadas de concentrarem-se nos medicamentos do tipo "eu também", que apresentam poucos benefícios clínicos a mais que outros remédios já existentes; de apressar o lançamento utilizando testes forjados para fazerem esses medicamentos parecerem melhores do que realmente são; e de suprimirem resultados de testes desfavoráveis. O setor também está sendo duramente atacado pela propaganda direta-ao-consumidor, considerada cara, agressiva e enganosa. Conversas com médicos significam, na melhor das hipóteses, dar a eles "comida, bajulação, amizade", e na pior, subornos descarados. Essas chamas foram alimentadas por dois acontecimentos no ano passado que atraíram a atenção do público: o processo do procurador-geral do Estado de Nova York, Eliot Spitzer, contra a GlaxoSmithKline (GSK), por ela ter supostamente suprimido informações que ligavam os anti-depressivos ao risco de suicídios em crianças (que posteriormente levou a iniciativas para que as companhias revelassem os resultados dos testes clínicos), e o susto sobre a segurança dos inibidores COX-2, depois da retirada, pela Merck, do Vioxx. De sua parte, as companhias farmacêuticas argumentam que para continuar inovando, elas precisam manter os preços altos, e assim também os lucros. Mesmo assim muitos americanos duvidam desses argumentos. As grandes farmacêuticas estão passando por um momento difícil defendendo o argumento de que lucros maiores significam mais inovação. Os lançamentos de medicamentos caíram nos últimos anos. As companhias aplicam de 15% a 20% de suas receitas em pequisa e desenvolvimento; os gastos mundiais nessa área dobraram na última década, para US$ 56 bilhões este ano segundo o centro de estudos CMR International. Mas o número de medicamentos aprovados pela FDA - uma medida não muito precisa de produtividade - caiu para 18 em 2002. No ano passado a FDA aprovou 34 medicamentos e há sinais de que a fila de lançamento está crescendo com novos compostos para o tratamento do câncer e diabetes. Muitos desses novos medicamentos na verdade têm origem em ágeis companhias de biotecnologia. Elas repassam seus produtos - em troca de boas recompensas - para as farmacêuticas maiores, que então fazem os testes clínicos, registram e os comercializam. No entanto, isso não impressiona os investidores, que já se cansaram da conversa do setor sobre drogas inovadoras. Stewart Adkins, analista da Lehman Brothers, acredita que os investidores estão simplesmente descontando os produtos que não alcançaram o estágio final de desenvolvimento clínico; tudo mais é visto como arriscado para se imputar valor. Mesmo assim, muitas empresas estão apostando nos produtos que estão na fila de lançamento, e no atual modelo de negócios para tirá-las da confusão, afirma Richard Balaban, consultor da Mercer. Isso não será suficiente, afirma, para reconquistar a confiança dos três principais clientes: pacientes, médicos e compradores. Mudanças nas vendas e no marketing podem ajudar. As companhias gastaram US$ 14,7 bilhões em marketing junto a profissionais da área da saúde no ano passado, e pelo menos US$ 3,6 bilhões em propaganda direta para o consumidor, segundo o centro de estudos Verispan. As companhias farmacêuticas hoje gastam um terço de suas receitas com vendas em marketing e administração, o mesmo que a Coca-Cola e a Nestlé. Isso deixa os críticos furiosos. Eles afirmam que as empresas poderiam facilmente baixar os preços e obter economias em promoções sem mexer em seus orçamentos de pesquisa e desenvolvimento. De sua parte, o setor aponta para os benefícios do marketing para a saúde - os médicos são mantidos atualizados em relação aos desenvolvimentos e o público de condições médicas suspeitas. As duas formas de marketing estão sob ataque. Conforme observa John Schaetzl, analista da GE Asset Management, a confusão com o COX-2 é um caso em que a promoção agressiva com o uso de marketing de massa para criar um medicamento de grande vendagem, resultou no uso inadequado e conseqüente retirada do mercado de um remédio que sem dúvida beneficiava alguns pacientes. Com relação ao marketing junto aos médicos, Jerome Kassirer, um ex-editor do "The New England Journal of Medicine" e autor do livro "On The Take", acha que ele deve parar - nada mais de presentes, cursos de treinamento patrocinados pelo setor, visitas de vendedores ou amostras grátis. Vários códigos de conduta já foram promulgados por escolas de medicina, órgãos profissionais e associações do setor. Várias companhias farmacêuticas já foram investigadas pelo Departamento de Justiça dos EUA por negócios escusos com médicos. Questões econômicas, mais do que as éticas, poderão forçar o ritmo de mudança. A indústria farmacêutica dos EUA possui hoje mais de 102 mil vendedores, todos tentando acesso aos melhores entre os 870 mil médicos existentes no país. Eles conseguem apenas uns poucos minutos com os médicos, tempo insuficiente para vender os frutos da ciência moderna. O setor também está lutando com outro elemento central de seu modelo de negócios: sua dependência da proteção de patentes para medicamentos de alto perfil. A Lehman Brothers avalia que, na melhor das hipóteses, medicamentos avaliados em US$ 8,8 bilhões vão enfrentar a concorrência dos genéricos nos EUA. Na pior das hipóteses, esse número sobe para US$ 15,5 bilhões. Como os últimos anos mostraram, o vencimento da patente de um medicamento de grande vendagem pode ser uma experiência dolorosa para uma companhia farmacêutica, eliminando bilhões de seu valor de mercado. Aliás, muitas das táticas que as empresas usam para reforçar seu poder sobre sua propriedade intelectual também estão sob pressão. O litígio deste ano sobre as patentes tem um significado especial para todo o setor, e não apenas para as companhias envolvidas. Os fabricantes de genéricos estão desafiando as grandes empresas nos tribunais por causa de três medicamentos de grandes vendagens - o Zyprexa, usado no tratamento da esquizofrenia; o Lipitor, para controle do colesterol; e o Plavix, para ataques do coração e derrames. Esses processos questionam as patentes originais de "composição de substância" desses produtos, e não apenas os esforços do setor para garantir proteção para alguns anos mais de lucros. Se qualquer uma dessas ações contra as grandes companhias forem vitoriosas, toda a indústria será afetada. Finalmente a última coisa que uma indústria sitiada precisa é de uma autoridade reguladora problemática. Mas a FDA também está sob pressão, acusada de aprovar medicamentos sem todos os testes de segurança. Há vários projetos de lei tramitando no Congresso dos EUA propondo a melhoria do monitoramento da segurança dos medicamentos e a própria FDA estará sob a mira do Capitólio este ano. Nos últimos meses, porém, a FDA teve um pouco de alívio. Lester Crawford, seu presidente em exercício, poderá ser oficializado. Ele é visto como um par de mãos seguro, não tendo nenhuma inclinação por promover uma reforma revolucionária na agência. E como se não tivesse problemas o suficiente, o setor não pode ignorar as queixas em relação aos preços. Os americanos pagam quantias muito diferentes por qualquer tipo de medicamento, dependendo de quem vai arcar com as despesas. O clamor por preços menores está ainda maior. Uma saída é a chamada "reimportação". Produtos farmacêuticos avaliados em US$ 700 milhões entraram nos EUA pelo Canadá em 2003. O governo responde por 45% de todos os gastos com medicamentos nos Estados Unidos. A indústria farmacêutica, animada com a perspectiva de vendas maiores, ficou mais confortável quando a lei estipulou que o governo não negociará os preços diretamente com as companhias farmacêuticas. Bem, as grandes companhias farmacêuticas poderiam brigar com seus clientes. Mas isso implicaria no risco de maior intervenção pelos governos que já têm a intenção de influenciar nos preços dos remédios e nos mecanismos de marketing. Mesmo que eles evitem isso, parece certo que as maiores companhias farmacêuticas do mundo terão que mudar.