Título: A persistência do dilema: crescimento ou inflação?
Autor: João Saboia
Fonte: Valor Econômico, 11/04/2005, Opinião, p. A10

A sociedade brasileira está dividida. De um lado estão os que almejam a retomada do crescimento econômico, mesmo que o preço a ser pago seja um pouco de inflação. Do outro, os que privilegiam o combate à inflação, mesmo sob risco de adiar o processo de retomada definitiva do crescimento econômico. É muito comum os economistas raciocinarem sobre crescimento econômico e inflação a partir de uma das relações mais notáveis em economia, conhecida como curva de Phillips. Tal curva mostra uma relação inversa entre inflação e desemprego, ou seja, quando o desemprego aumenta a inflação tende a diminuir e vice-versa. Apesar das críticas feitas à curva de Phillips desde sua proposição, há quase meio século, ela se mantém como uma referência importante para os economistas até hoje. Desde 1999, a política econômica do governo tem como principal objetivo atingir uma determinada meta para inflação. Teoricamente, o sistema de metas inflacionárias possui um ponto central e uma faixa de variação. Em 2005, por exemplo, o centro foi definido em 4,5% e o teto, 7%. Na prática, reconhecendo as dificuldades para se atingir o centro da meta, as autoridades estão mirando em 5,1%, mantendo o teto em seu valor original. Portanto, a condução da política econômica tem se pautado por medidas que conduzam a evolução dos preços para esta meta, mesmo que para tal seja necessário desacelerar a economia. O aumento da taxa de juros nos últimos meses tem exatamente este objetivo, conforme claramente enunciado nas últimas atas do Copom. Os críticos da atual política econômica argumentam, com razão, que o governo poderia ter outras metas explícitas além da inflação. Por quê não combinar uma meta inflacionária com uma meta de crescimento econômico? Ou ainda com uma meta para a taxa de desemprego? Conforme sugerido pela curva de Phillips, o país poderia conviver com uma inflação mais alta e uma taxa de desemprego mais baixa, ou com uma inflação mais baixa e uma taxa de desemprego mais alta. Enquanto o governo aposta na segunda alternativa, seus críticos preferem a primeira. Fica a pergunta: não haveria uma situação intermediária, onde a combinação entre crescimento econômico e inflação fosse mais favorável que a atual? A solução poderia ser a utilização da chamada taxa de sacrifício, que é a soma das taxas de inflação e de desemprego (em inglês, "misery rate"; o termo "taxa de sacrifício" foi sugerido por meu colega da UFRJ, Fernando Cardim de Carvalho). Em outras palavras, o ideal seria minimizar a taxa de sacrifício, de modo a se ter a menor inflação possível simultaneamente com o menor desemprego possível (isto é, com o maior crescimento econômico possível). A análise da evolução da taxa de sacrifício no último triênio mostra que ela caiu de 24,2% no último ano do governo FHC para 21,6% em 2003 e 19,1% em 2004. Tal resultado se deve, principalmente, à queda do IPCA de 12,5% para 7,6% no período. Quanto à taxa de desemprego, aumentou em 2003, voltando praticamente ao mesmo nível de 2002 em 2004.

Um dos desafios da gestão econômica é reduzir a taxa de sacrifício a partir da queda do desemprego

Verifica-se, portanto, que o governo Lula está conseguindo reduzir a taxa de sacrifício. Tal redução, entretanto, está centrada basicamente na queda da inflação, na medida em que a taxa de desemprego continua muito alta. Não seria o momento de começar a atacar a segunda componente da taxa de sacrifício (o desemprego) em vez de se concentrar apenas na primeira (a inflação)? Segundo a série do IPCA após o Plano Real, apenas em 1998 a inflação foi inferior à meta de 5,1% proposta pelo governo para 2005. Naquele ano, último antes do desmoronamento da âncora cambial, o resultado foi excepcional, atingindo 1,7% e encerrando definitivamente o processo de queda da inflação iniciado com o Plano Real. Desde então, a inflação tem flutuado. O melhor resultado obtido pelo IPCA nos últimos seis anos foi 6% em 2000 e o pior, 12,5% em 2002. No ano passado, o IPCA foi puxado pelos preços administrados (monitorados) pelo próprio governo como os serviços públicos e residenciais, transporte público, combustíveis e planos de saúde. Enquanto os chamados preços livres cresceram 6,6%, os administrados atingiram 10,2%. Parcela importante da meta de inflação de 2005 já está comprometida com os preços administrados, que possuem regras próprias de reajuste. Algumas estimativas indicam que cerca de 2% já estariam garantidos para a inflação deste ano apenas por conta dos reajustes de preços monitorados, sobrando muito pouco espaço para qualquer aumento nos preços livres. Insistir numa meta de inflação irrealista para 2005 significa correr um sério risco de não atingi-la, prejudicando o crescimento econômico e aumentando a taxa de desemprego. Desta forma, a queda da taxa de sacrifício obtida entre 2002 e 2004 poderia ser interrompida. Um dos desafios para o atual governo é a redução da taxa de sacrifício a partir da queda da taxa de desemprego e não apenas da inflação. Uma meta inflacionária um pouco menos ambiciosa e mais adequada ao passado recente da economia brasileira poderia dar excelentes resultados em termos de crescimento econômico e redução do desemprego. É preciso não esquecer que o sistema de metas inflacionárias não é apenas um valor pontual, mas uma faixa para a inflação. Portanto, pode-se mirar um pouco acima ou um pouco abaixo dentro da faixa de variação. A meta oficial de inflação será rigorosamente cumprida desde que o IPCA não passe de 7% em 2005. Conforme mencionado no início do texto, o sistema de metas inflacionárias foi criado no início do segundo mandato do governo FHC. Desde então, não houve qualquer mudança importante em termos de política econômica. Em seu terceiro ano, está mais do que na hora do governo Lula mostrar se é diferente ou se representa apenas a continuidade da política econômica do governo FHC.