Título: O Brasil precisa ter uma estratégia para a Argentina
Autor: Fabio Giambiagi
Fonte: Valor Econômico, 11/04/2005, Opinião, p. A11

Quem conhece a Grécia sabe que o sentimento que seu povo nutre pelos turcos é de verdadeiro ódio, por conta de guerras ocorridas há 500 anos. E, entretanto, se a Turquia ingressar na União Européia (UE) na próxima década, os dois países acabarão formando parte do mesmo "clube". Há alguns meses, por sua vez, após a "revolução laranja", a Ucrânia, através das suas novas autoridades, declarou estar se voltando para a Europa - deixando atrás a influência russa - no que deve acabar em um pedido de adesão do país à UE. É a história se movendo. Diante disso, que Argentina e Brasil deixem o seu processo de integração ser paralisado por frangos e geladeiras, é simplesmente ridículo. Àqueles leitores que sabem das minhas origens, faço um esclarecimento. Embora filho de argentinos, estes comentários estão isentos de qualquer afinidade específica com o país vizinho. Quem escreve torce no futebol pelo Brasil e escreve como brasileiro. Ocorre que estamos perdendo a oportunidade de estreitar relações com a Argentina - e isso tem um custo para o país. Estamos nos deixando levar pelo passionalismo e deixando de ter uma visão de longo prazo sobre o tema. Poucas nações sofreram tanto com os problemas argentinos de 1999/2002 como a Espanha. O país tinha feito investimentos pesados na época das privatizações e eles praticamente viraram pó. Primeiro, porque o PIB argentino encolheu 20% em 4 anos, o que significou que as premissas de comportamento das vendas se revelaram todas erradas. Segundo, porque com a desvalorização, o valor dos ativos espanhóis medidos em dólares desabou. E terceiro, porque a "pesificação" arrasou o sistema financeiro argentino, incluindo os bancos espanhóis que representavam uma parcela importante do mercado local. Em que pese tal retrospecto, Rodríguez Zapatero construiu uma relação pessoal especial com Nestor Kirchner e, na defesa dos interesses do seu país, está costurando acordos entre as empresas espanholas na Argentina e o governo vizinho, que deverão trazer importantes benefícios para todas as partes. Há um equívoco na forma em que a mídia tem tratado a Argentina ao longo dos últimos anos. Entre 2002 e 2004, as exportações para a Argentina cresceram 215 %, contra um aumento das vendas para o resto do mundo de 54 %. Na comparação entre esses mesmos 2 anos, enquanto a balança comercial com a China melhorou apenas US$ 800 milhões, devido a preços e venda de "commodities", a do Brasil com a Argentina melhorou US$ 4,2 bilhões, com expansão de vendas de manufaturados. Em 2005, mesmo com todas as restrições, até março as exportações para a Argentina tinham crescido 36%, acima das exportações para o resto do mundo, que se expandiram 25%. E, entretanto, quem lê os jornais julga que a China é o Eldorado e está na hora de esquecer a Argentina. Isso não faz sentido. É evidente que o empresariado brasileiro deve reclamar contra os entraves que o governo argentino tem colocado às exportações de diversos produtos brasileiros. É também evidente que o governo brasileiro deve reagir contra essas iniciativas, que ferem o espírito do que deve ser uma área de livre comércio. O que precisa ficar claro é que essas razões não devem nos fazer perder de vista as potencialidades que teria para o Brasil ter uma estratégia de maior integração com a Argentina. E o Brasil não tem uma estratégia clara nesse sentido, porque o país está imbuído de dois sentimentos errados. O primeiro é a crença de que o desempenho macroeconômico da Argentina pode "puxar o país para baixo". Ocorre que, embora com uma volatilidade muito maior do que a nossa - e com uma inflação que deverá ser maior que a nossa em 2005 - na média dos últimos 15 anos a Argentina progrediu mais do que o Brasil, tendo um desempenho melhor do PIB e uma inflação média menor, na comparação do período pós-estabilização - desde 1992 na Argentina e desde 1995 no Brasil. O segundo sentimento é a idéia de que "aparecer na foto" com a Argentina, que decretou o "default" da sua dívida externa, poderia criar um problema de imagem para o Brasil. Isso, porém, depende de como o fato for encarado pelo resto do mundo. É claro que se ambos países se juntarem para desafiar o FMI, haveria conseqüências negativas nos mercados. Rodríguez Zapatero, porém, tem feito movimentos claros de aproximação com a Argentina e ninguém achou que isso pudesse colocar em risco a política econômica espanhola. Mais ainda, a Espanha tem sido parte importante do processo de convencimento da liderança política argentina a retomar os acordos com o FMI, visando a normalização das relações com a comunidade financeira internacional. No xadrez da geopolítica mundial, a Espanha está jogando um papel que poderia ter sido assumido pelo Brasil. Note-se que o Brasil tem exercitado uma política efetiva de aproximação, por exemplo, com a Venezuela, em que pesem as diferenças entre as políticas dos dois países. Argentina e Brasil teriam uma gama enorme de vantagens se unissem seus esforços em favor de uma maior integração. O que vai acontecer com o Brasil nos próximos 20 anos depende em parte do destino dos nossos vizinhos. E nós somos parte interessada nisso. Não ganhamos nada ignorando a geografia. Devemos, portanto, ter uma estratégia clara de inserção conjunta na economia mundial. O fim do "default" argentino é uma boa oportunidade para começar a definir essa estratégia.