Título: Kirchner promove 'revival' do peronismo
Autor: Paulo Braga
Fonte: Valor Econômico, 11/04/2005, Especial, p. A12

Sem citar o nome de Juan Domingo Perón, o presidente argentino Néstor Kirchner está protagonizando uma reedição de alguns conflitos e práticas do primeiro período em que o personagem mais conhecido da política argentina esteve no poder (1946-55). Nos últimos meses, Kirchner atacou o empresariado e usou seu poder para mobilizar grupos que apóiam o governo, promovendo boicotes e ações de intimidação com a justificativa de evitar uma volta da inflação. Foi acusado pela Sociedade Interamericana de Imprensa de "irrestrito antagonismo em relação aos meios de comunicação e uma vontade de recorrer às sanções econômicas para calar as críticas", em referência ao uso da publicidade oficial como instrumento de influência na pauta jornalística. Também desencadeou um confronto com o Vaticano ao destituir um bispo militar que criticou seu ministro da Saúde. Além disso, mantém uma relação de ambigüidade com o governo dos EUA: a Argentina reconhece a ajuda que até agora vem sendo prestada por Washington no tenso relacionamento entre o país e o FMI, mas limita os contatos com o governo americano. Kirchner já deixou de receber funcionários do Departamento de Estado e não se encontrou com o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Donald Rumsfeld, quando ele visitou a capital Buenos Aires, no mês passado. Alguns analistas interpretam a atitude de Kirchner como uma versão "light" do que fez Perón, que entrou em choque com setores sociais e instituições para exercer o poder de maneira autoritária. Com objetivo diferente, a maneira de agir do atual presidente - que não mencionou o nome de Perón durante seu discurso de posse e em raríssimas ocasiões alude a ele - seria uma forma de compensar sua frágil base eleitoral, já que Kirchner foi eleito com apenas 22% dos votos. Kirchner também buscaria enfatizar as diferenças entre a sua versão do peronismo, mais próxima da concepção do próprio Perón, e a política neoliberal adotada pelo ex-presidente Carlos Menem, seu adversário dentro do Partido Justicialista (PJ), peronista. E há também quem considere que as ações de Kirchner podem ser o início de uma escalada autoritária. "O principal ponto em comum entre Perón e Kirchner é que ambos exercem uma liderança presidencialista muito forte e têm uma concepção semelhante da necessidade de acumular poder", disse o cientista político Sergio Berensztein, da Universidade Torcuato di Tella. Ele rejeita, porém, a tese de que os dois líderes se assemelhem no pouco apreço pela democracia. "Perón chegou ao poder como integrante de um golpe militar e era antidemocrático. Kirchner tem vocação hegemônica, mas é muito mais democrático, não tem características fascistas", acrescentou. O historiador Mario Rapoport, da Universidade de Buenos Aires, acredita que Kirchner retoma aspectos do discurso de Perón, como o nacionalismo e a defesa dos setores produtivos. A diferença é que "Perón estava no poder com um processo de industrialização em curso, enquanto que este governo teve de encarar a desindustrialização do país." No outro extremo, o historiador José Ignacio Garcia Hamilton vê semelhanças entre as ações do presidente e as táticas de intimidação do peronismo, semelhantes às do fascismo e do nazismo. Embora acredite que a situação da Argentina é diferente do nazismo, ele considera que "Perón adotou esse modelo de manipular as atividades empresariais, não buscando a livre concorrência, mas usando ameaças, extorsões e medo". "Os empresários acabaram aderindo, alguns por convicção, outros por medo e outros por oportunismo." Hamilton disse que o objetivo de Kirchner é "colocar na linha" os empresários e compara o boicote estimulado pelo governo contra a Shell aos boicotes feitos pelos nazistas aos judeus. No mês passado, o presidente pediu que a população não comprasse "uma só lata de óleo" na Shell, depois de a petroleira ter aumentado os preços da gasolina e do diesel. No dia seguinte, postos de gasolina foram ocupados por grupos de desempregados alinhados com o governo, liderados pelo piqueteiro Luis D´Elia (leia entrevista abaixo). Além de D´Elia, outro líder piqueteiro, Jorge Ceballos, que também é funcionário do Ministério do Desenvolvimento Social, mandou militantes ocupar postos de gasolina. O governo nega que tenha determinado as ações, mas os postos foram ocupados sem interferência policial. O boicote acabou levando a um recuo das empresas, que suspenderam aumentos. O choque com a Igreja ocorreu depois de o bispo militar, Antonio Baseotto, ter dito que o ministro da Saúde, Ginés González García, deveria ser "amarrado a uma pedra e atirado ao mar", por defender a descriminalização do aborto. A declaração, que segundo o bispo foi uma referência bíblica, foi interpretada como uma alusão aos métodos usados pelo regime militar para eliminar opositores. Baseotto foi destituído por Kirchner, e o Vaticano reagiu confirmando-o no cargo. O caso vive hoje uma trégua devido à morte do papa João Paulo II. O historiador Pacho O´Donnell, que foi secretário de Cultura no governo Menem, afirmou que a semelhança entre os conflitos de Kirchner e Perón com a Igreja é apenas superficial. "Kirchner não tem um projeto de país e trabalha sobre a conjuntura. Perón assumiu o poder com um país em melhores condições e propôs um projeto de mudança". Segundo ele, a percepção de Perón de que a Igreja ameaçava esse projeto foi a razão do conflito. Para o analista político Hugo Haime, os terrenos em que ocorrem os atritos são os mesmos, mas a comparação é difícil porque a sociedade argentina não vive, como na época de Perón, polarizada entre seus partidários e seus opositores. Em contraste com a polarização do passado, o país estaria hoje em um clima de apatia e descrédito em relação à política, ainda como reflexo do colapso econômico, político e social de 2001. "A situação é de um total vazio de discurso político", disse Haime. Isso abriria espaço para Kirchner construir sua autoridade atraindo eleitores de fora do peronismo e com um discurso maniqueísta. "O argentino está esperando que venha alguém e resolva a sua vida. E o presidente tenta fazer isso dizendo o que está certo e o que está errado", afirmou.