Título: Exportar petróleo brasileiro: esta é uma decisão conveniente?
Autor: Carlos Lessa
Fonte: Valor Econômico, 13/04/2005, Opinião, p. A13

É discutível o sentido estratégico de a longo prazo converter o Brasil em exportador de petróleo. Não tenho a menor dúvida quanto à vantagem da auto-suficiência que atingiremos em 2006. A Petrobras hoje nos garante um bom desempenho até 2015. Entretanto, utiliza medíocres 3,5% de crescimento para o PIB (limite ditado pelo BACEN). Questão inquietante é: há sentido em atrair capitais externos para acelerar a exploração e a produção de petróleo além das necessidades de abastecimento interno? Dispomos de amplas potencialidades energéticas: hidroeletricidade, eólica, etanol, biodiesel, co-geração com bagaço e palha de cana-de-açúcar, casca de arroz, resíduos da indústria de papel e celulose, urânio e carvão. Podemos a longo prazo formatar um balanço energético baseado em fontes renováveis. Nosso petróleo não é muito abundante (na plataforma marítima cálculos otimistas projetam reserva de 30 bilhões de barris), nosso carvão é de pouca qualidade. Apenas urânio temos abundância. Somos o sexto produtor mundial. Toda exportação carrega energia incorporada. Uma tonelada de soja, além de energia solar, leva o combustível utilizado desde sua manipulação logística até os porões do graneleiro. Obviamente, uma manufatura industrial abriga frações de energia agregadas ao longo da cadeia produtiva e logística. Para o Brasil, é preferível exportar energia renovável incorporada em mercadorias de alto valor agregado. Reservemos para nosso futuro o que não for renovável, "exportando-o" na versão incorporada a um produto de alto valor. Ainda que haja controvérsia, projeta-se para 2010 uma rápida redução das reservas mundiais. Em 2010, o Reino Unido, exportador a partir do Mar do Norte, não terá mais excedente. A China e a Índia são importadoras que crescem seu consumo de petróleo acima de 5% ao ano. Em 2000, a Indonésia deixou de exportar. O Japão, a Alemanha, a França e a Itália são dependentes totais. As reservas comprovadas dos EUA são de 30,7 bilhões de barris, ou 2,7% do total mundial. Entretanto, consomem 20,1 milhões de barris/dia, ou 25,1% do planeta. Cada norte-americano consome anualmente 8 TEP (tonelada equivalente de petróleo) e cada europeu 3,4 TEP. É um cenário geopolítico inquietante, agravado pela resistência norte-americana em aderir ao Tratado de Kioto. Os excedentes de petróleo provêm de áreas conflitadas, politicamente instáveis: no Oriente Médio estão 63,3% das reservas mundiais. A atual alta de preços parece antecipar-se às projeções deste cenário de escassez progressiva - descobertas importantes ficaram raras. É possível pensar a reserva brasileira de petróleo como um estoque estratégico em crescente valorização. O general Luiz Schoroeder Lessa, sob perspectiva nacionalista, lembrou à ministra Roussef (em recente debate no CDES) que o petróleo teria tendência de alta. Foi contestado: uma consultoria internacional citada pela ministra afirmava que o petróleo deixaria o patamar de U$ 40 para U$ 30 por barril. Na atualidade, atinge a marca dos U$ 50. Em janeiro, a ANP (Agência Nacional de Petróleo) colocou em licitação as áreas "azuis", bacias que a Petrobras teve que devolver à Agência segundo a Lei 9.478/97. Felizmente, Guilherme Estrela deu impulso à exploração das concessões da Petrobras e reduziu os lotes para devolução. A sexta rodada de licitações está sub judice no STF. Áreas promissoras conhecidas pela empresa deveriam permanecer com ela. Uma das jóias devolvidas foi o Bloco BC-61, vizinho ao campo de Marlin. Um consórcio estrangeiro venceu a licitação (a americana Devon com a sul-coreana SK), no item Conteúdo Local. A Petrobras perdeu a "concorrência" de uma área em que muito provavelmente há petróleo, porque sua competidora ofereceu adquirir 85% de equipamentos e materiais nacionais. Não cumprirá o prometido. Afinal, a Petrobras, empenhada em apoiar a indústria nacional, adquire em média 60%. A multa (apenas 20% sobre o não executado) será paga sem dificuldade: é insignificante em relação ao valor do campo. Foi uma "manobra inteligente" da empresa não-nacional, que poderá exportar o que obtiver. Volto à questão inicial. É estratégico para o Brasil tratar o petróleo como um item "non tradable". A Petrobras pode operar um vetor de preços para derivados, ser um instrumento de política industrial e subsidiar exportações por tarifas cruzadas. É uma empresa sob controle do Estado, mas dispomos apenas de 30% das suas ações - o governo neoliberal vendeu 40% delas no exterior. Pagando dividendos satisfatórios, o governo poderá acionar a Petrobras para concretizar interesses nacionais.

Estrategicamente, é um equívoco econômico e geopolítico abrir nossas potencialidades de petróleo ao investimento estrangeiro

Não é desejável para o petróleo brasileiro uma trajetória similar à do México, que ao longo dos anos 1990 praticou uma política de máximas exportações de petróleo cru. Em 1993, as reservas eram 50,9 bilhões de barris. Em 2002, caíram para 12,6 bilhões. O México está com sua capacidade para exportar em declínio acelerado. Terá que se projetar para o Caribe. O Brasil é a Arábia Saudita da energia hidrelétrica. Bautista Vital, este grande brasileiro, afirma: "o Brasil dispõe da mais impressionante potencialidade de biomassa mundial". Com etanol e biodiesel poderemos reduzir o consumo de derivados de petróleo e prolongar a vida útil das reservas. O mundo utiliza 56% de energia a partir de petróleo e gás natural. O Brasil não precisa ficar prisioneiro desta vulnerabilidade: no longo prazo, pode ampliar a geração de energia elétrica e a participação da biomassa. Pode se converter em exportador de etanol e biodiesel, renováveis. Não será fácil. Entretanto, a importância da ciência e da tecnologia é ilustrável com o vinhoto, um sub-produto da agroindústria açucareira. Até 20 anos atrás, era um veneno ambiental, poluía rios; hoje é um fertilizante da agroindústria. O biodiesel ainda é problemático - devemos pesquisar usos para uma futura disponibilidade gigantesca de glicerina, seu subproduto; necessitamos aperfeiçoar sementes de oleaginosas, métodos e equipamentos agrícolas, processos industriais e motores de alto rendimento com biodiesel. Já é vitória da agronomia brasileira ter conseguido uma variedade de mamona que amadurece sem espalhar os grãos, garantindo inclusão social para uns 400 assentamentos de reforma agrária no semi-árido. O Brasil necessita reflorestar terras amazônicas. A palmeira de dendê é altamente recomendável para ocupar as margens devastadas do eixo de Carajás. Não é nativa, mas produz um óleo precioso. Necessitamos aperfeiçoar o domínio agronômico e modificar restrições românticas ambientalistas. Um maquinário que seja capaz de colher a cana-de-açúcar e sua palha disponibilizará novo combustível. Em potencial, equivale a 10% da atual geração de hidroeletricidade. Ainda não dominamos os processos industriais para produção eficiente e padronizada de biodiesel. Duas empresas nacionais estão em marcha para dispor desta tecnologia. O Brasil necessita de política científica e tecnológica que nos dê liderança no tema. Boa notícia é que a Petrobras hoje se define como empresa de energia. Acho miopia da ANP levar à frente uma sucessão de licitações. Estrategicamente é um equívoco econômico e geopolítico abrir nossas potencialidades de petróleo ao investimento estrangeiro. Deveríamos atraí-lo para, em projetos combinados, ampliar nossa produção de etanol e de biodiesel.