Título: Alerta monetário
Autor: Por Rubem de Freitas Novaes
Fonte: Valor Econômico, 05/10/2004, Opinião, p. A-14
Expansão da moeda em torno de 20% ao ano pode gerar inflação de dois dígitos "Money matters." Milton Friedman
Pela importância da teoria monetária, é pouco e insuficiente o conhecimento dos diversos agentes econômicos sobre os seus principais aspectos. De início, cabem alguns comentários sobre os conceitos de moeda. A base monetária ("high powered money") corresponde à emissão primária de moeda decorrente de déficits públicos, de operações de open market e/ou de acúmulo de reservas externas. Da base monetária chega-se ao conceito de M1 - meios de pagamento (papel-moeda em poder do público + depósitos à vista nos bancos) através de um mecanismo de multiplicação bancária que depende fundamentalmente dos recolhimentos compulsórios dos bancos junto ao Bacen. A partir de M1 derivam-se outros conceitos de moeda à medida que se agregam ativos financeiros com diferentes graus de liquidez ("moneyness"). Assim é que, para chegar ao conceito mais amplo de M4, adicionamos aos tradicionais meios de pagamento, os depósitos de poupança, CDB`s, letras de câmbio e imobiliárias, quotas de fundos de renda fixa e os títulos públicos federais, estaduais e municipais mantidos pelo setor não-financeiro. Aqui chegamos às primeiras questões importantes relativas à condução da política monetária: Que conceito usar? Qual das definições de moeda tem mais a ver com as flutuações da demanda agregada e, por conseguinte, com as variações do PIB nominal (PIB real + inflação)? Seguindo um passo adiante, perguntamos: Com que defasagem a moeda influencia o PIB? Terá esta defasagem constância no tempo, dependente que é da velocidade de circulação da moeda? Finalmente, e sem muita chance de obtenção de uma resposta precisa: Como se distribui o impacto da política monetária entre crescimento real e inflação? Algumas dessas questões fizeram com que diversos bancos centrais optassem por trabalhar dentro de regimes de metas de inflação, focados preferencialmente no controle das taxas básicas de juros, o que já foi motivo de análise em outro artigo ("Meta de inflação na encruzilhada", O Estado de S. Paulo, 02/03/2003). Para a nossa análise presente, importa notar que, se as "zonas cinzentas" mostradas justificam cautelas no manejo das rédeas da política monetária, não justificam, entretanto, o grau de desconsideração que está havendo no acompanhamento dos principais agregados, como se moeda, de repente, não mais importasse (já repararam que a imprensa especializada do Brasil, com raras exceções, deixou de publicar os dados de expansão monetária e de crédito em suas séries estatísticas? A ausência desses indicadores até que se justificava quando o ritmo inflacionário mudava constantemente de patamares, tornando muito volátil a velocidade de circulação da moeda. Mas não se justifica hoje, quando a quase constância da inflação estabiliza o impacto monetário sobre a economia).
Estatísticas do Bacen mostram que os indicadores monetários estão crescendo a taxas anuais exageradas
Não precisa ser formado na Universidade de Chicago para levar a moeda muito à sério. Algumas conclusões sobre o tema são aceitas por todos os economistas de ponta, oriundos das mais diferentes escolas. Vejamos, por exemplo, o que diz a respeito o professor Olivier Blanchard, ex Harvard e hoje no MIT, quando apresenta os consensos da profissão em seu livro-texto "Macroeconomia": "A política monetária afeta o produto real no curto prazo, mas não no médio ou longo prazos. Eventualmente, uma taxa maior de expansão monetária acaba por se traduzir, numa relação um por um, em maior taxa de inflação." Segundo Blanchard, só não há consenso sobre a extensão do "curto prazo". Pois bem, as estatísticas fornecidas pelo Bacen nos mostram que os indicadores monetários para o país estão crescendo a taxas anuais extremamente exageradas. No final de julho, M1 apresentava expansão anual, ponta a ponta, de 23%, e M4, de 21%. O volume total de operações de crédito do sistema financeiro, imagem espelhada da evolução monetária, também em final de julho, apresentava crescimento anual de 17%. Esses dados, como não poderia deixar de ser, estão refletidos na forte expansão de demanda agregada hoje verificada. É indiscutível que nossa economia necessitava de uma injeção de ânimo, após a estagnação de 2003. Mas há de se agir com cautela. Segundo nossos melhores especialistas, com a exceção honrosa do professor Delfim Netto (que acredita na possibilidade de substancial mudança no ânimo empreendedor de nosso empresariado privado), estamos hoje restritos, pela escassez de investimentos, a um crescimento sustentável não muito superior a 3% ao ano. Como não crescemos em 2003, podemos crescer até 6% este ano. Mas, a partir daí, a manutenção do ritmo atual esbarrará em muitos gargalos, inclusive infra-estruturais. Dadas as limitações da oferta, uma expansão da moeda e do crédito próxima de 20% ao ano, se não for apenas pontual, comandará certamente uma inflação na casa dos dois dígitos. Como vimos, de início, o controle monetário se dá fundamentalmente no controle da base (emissão primária). Para agir, o governo terá de alargar ainda mais o seu superávit operacional, oferecer remuneração atrativa que evite a "monetização" da dívida pública (como a dívida pública tem ordem de grandeza dez vezes superior à da base monetária, basta 1% de monetização para expandir a moeda em cerca de 10%) e/ou postergar os planos porventura existentes de acumular reservas externas. O câmbio contido na faixa atual e uma fortíssima austeridade fiscal (leia-se contenção de despesas correntes a ponto de praticamente eliminar o déficit nominal) podem aliviar o peso incidente sobre a política de financiamento da dívida pública. Caso contrário, o Bacen só poderá conduzir-nos a taxas responsáveis de crescimento monetário, praticando taxas muito altas de juros reais. Fica o alerta!