Título: Os sem-dinheiro
Autor: Eliana Cardoso
Fonte: Valor Econômico, 14/04/2005, Brasil, p. A2

A maioria dos sem-terra, sem-teto, sem-camisa, sem-comida, com-bolsa e sem-dinheiro está abaixo de qualquer linha de pobreza. Lá se encontra porque não tem emprego decente. Lá não estaria se a economia crescesse com aumento de demanda por trabalho e o sem-dinheiro tivesse mobilidade e preparo para preencher a vaga criada pelo crescimento. Sem-dinheiro e sem-carvão é "O cavaleiro do balde", que sente frio no conto de Kafka e decide, para convencer o carvoeiro a lhe dar o que precisa, aparecer na carvoaria montado no seu balde, com a alça da caçamba a lhe servir de rédea. Mas o balde vazio é tão leve que voa com seu cavaleiro acima da porta da carvoaria. O carvoeiro pensa ouvir um freguês. Sua mulher insiste que não ouve nada, abre a janela e abana o avental. O ar se move, o balde sobe ainda mais alto e o herói se perde para sempre nas montanhas geladas. Talvez, na história de Kafka, o balde vazio represente uma privação tão grande que faz o herói levitar acima de qualquer ajuda possível. E, talvez, dessa privação exagerada tenha brotado a escolha da estratégia que seria sua perdição. Estratégia quase tão defeituosa quanto a do cavaleiro do balde é a tentativa de concentrar o esforço de redução da pobreza na distribuição de R$ 15,00 até R$ 45,00 à família com renda abaixo de R$ 100,00. Para a família indigente isolada em municípios da Chapada das Mangabeiras, Chapada do Araripe, Xingó, Bico de Papagaio, Ribeira, Missões, Águas Emendadas e outros bolsões de pobreza, onde sobram mazelas, mosquito e barbeiro e faltam infra-estrutura e escolas, as pequenas transferências não põem fim à perpetuação da pobreza de pai para filho. O programa rende votos, mas deixa o pobre amarrado ao seu beco sem saída. Até mesmo a distribuição do mapa do caminho que leva à rodoviária mais próxima com passagem para um município próspero teria menor custo e melhor resultado. O crescimento das favelas nos municípios mais ricos causaria desconforto a nossas falsas consciências. Mas os miseráveis que abandonassem os grotões veriam aumentar a possibilidade de melhorar de vida. Transferências não funcionam onde não há crescimento. Desde 1946, o Banco Mundial já transferiu meio trilhão de dólares em assistência aos países pobres. Ela deu frutos apenas onde houve crescimento, mesmo crescimento com mais desigualdade, como na China. Por volta de 1980, a incidência da pobreza na China estava entre as mais altas do mundo, com mais de 60% da população abaixo da linha da pobreza. Hoje a proporção é de 20%. Mais de 200 milhões de chineses, entretanto, ainda são indigentes. Com certeza, crescer não basta.

Programas dão voto, mas perpetuam a pobreza

Acabar com a indigência exige políticas públicas. Regiões onde o clima, a doença e o isolamento impedem um esforço integrado terão de encarar uma política migratória. Municípios onde o nível de renda e capital humano são muito baixos terão de contar com ajuda para importar educadores. Parte do financiamento pode-se obter via redução de recursos para o ensino superior. A redução da pobreza exige padrões mínimos para a educação de base, com pisos para a formação e salário dos professores, para o equipamento pedagógico e o conhecimento adquirido por toda criança. A vitória depende do desenvolvimento de lideranças locais. Dê uma olhada na estratégia do Movimento dos Sem-Terra. Esse MST autoritário, que nos horroriza porque despreza a democracia e não vacila diante do crime, sabe que só vence quem tem liderança e organização, a economia de escala dos agrupamentos, escolas e habitação barata construída em mutirão. As pequenas transferências de dinheiro são o elemento menor. As críticas ao Bolsa-Família têm se restringido aos aspectos de sua administração. Uma pesquisa do Ipea mostra que, em 2002, em 53 municípios nordestinos, numa amostra de 5 mil famílias, 23% das famílias beneficiadas não foram encontradas. Surpreso? Desvios são inevitáveis em qualquer programa de assistência a milhões de pessoas. E mesmo sem desvios, um pouco de dinheiro na conta de famílias miseráveis, em municípios miseráveis, nunca poderia corrigir uma pobreza estrutural. A história que Ribamar Oliveira conta ("Estado de S. Paulo", 11/4) é exemplar porque ilustra as contradições de programas mal-arrumados. No lugar da construção das obras que ligariam a hidrelétrica de Tucuruí aos Estados do Norte, o uso de energia de termelétricas (com diesel subsidiado e desviado antes da chegada ao destino) aumenta o buraco do orçamento fiscal, a poluição e os apagões. Economia porca custa caro. Por isso, também está saindo caro o cadastro único feito às pressas para economizar recursos no programa de transferências. Um programa integrado de pobreza exigiria o fim de políticas demagógicas - como o aumento do salário mínimo, que contribui para o aumento da informalidade e do rombo da Previdência. Exige elevação do superávit primário para reduzir a taxa de juros que força os empresários a correr atrás de renúncias fiscais e favores dos burocratas encastelados no BNDES. Impõe a reestruturação de gastos e impostos. Corta parte das renúncias fiscais como contrapartida a um corte de impostos sobre a folha de pagamentos. Reforma a Previdência para angariar recursos para investimentos em infra-estrutura. Arregimenta educadores e forma líderes comunitários nos municípios mais pobres. Tira recursos da educação superior em favor da educação básica. Exige trabalho no lugar da propaganda. Um bom programa requer uma visão integrada de projetos e orçamentos. Impõe ao governo a escolha de prioridades e a substituição de alguns gastos por outros. Porque são caras e de pouca valia as políticas desconectadas e inconsistentes, "mãos viajando sem braços, obscenos gestos avulsos".