Título: Igreja Católica está com o foco errado
Autor: Maria Clara R. M. do Prado
Fonte: Valor Econômico, 14/04/2005, Opinião, p. A13

Com todo o respeito à Igreja Católica Apostólica Romana, e correndo o risco de excomunhão, não dá para entender o propósito das recentes declarações dos representantes da Arquidiocese do Rio de Janeiro com respeito às atitudes religiosas do presidente da República. Quanto mais se pensa no assunto, mais a questão beira as raias do ridículo. Afinal, é de se perguntar o que é ser um "cristão-modelo" para o cardeal d. Eugênio Salles, que acusou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva de não estar encaixado naquela moldura. E mais: o que teria levado o atual Arcebispo do Rio, d. Eusébio Sheid, a declarar na semana passada, com veemência, que Lula não é católico, mas caótico? Será que por "cristão-modelo" deve-se tomar todos aqueles, homens, mulheres e instituições, que permanecem em silêncio diante da chacina que matou a esmo 30 pessoas na Baixada Fluminense, no final de março? Não se conhece sequer uma nota oficial de repúdio ou um gesto solene de condenação ao crime, da parte da Igreja Católica. Mantém-se como tem feito, ao longo dos últimos anos, face à crescente e impune violência que assola o Rio de Janeiro: calada, distante, omissa, como se sua missão se restringisse a lutas morais obsoletas como a campanha contra o uso de barreiras contraceptivas. Os representantes da Igreja, diga-se, têm liberdade para dizer o que quiserem acerca dos governantes do país. Aliás, foi para isso que o Marechal Deodoro da Fonseca deixou sedimentado em decreto, em janeiro de 1890 - depois cravado na primeira Constituição da República - a separação entre os poderes civil e eclesiástico no país. Só para relembrar, os avanços introduzidos então foram radicais: foi decretada a liberdade de culto no país, o casamento religioso deixou de ser reconhecido pelo Estado, o ensino religioso foi proibido nas escolas públicas, os capelães foram expulsos do Exército, os clérigos perderam a condição de serem elegíveis para cargos públicos e os cemitérios passaram a ser administrados pelas autoridades municipais. Ficou claro, desde então, que nenhum culto ou igreja gozaria de subvenções oficiais e nem teriam relações de dependência ou aliança com o governo. Visto hoje, 115 anos depois, percebe-se que a iniciativa ajudou a moldar a moral e os costumes da sociedade brasileira, ao longo desse tempo. Foi bom para os arcebispos que, independentes, podem dizer o que quiserem do governo, e serem por isso livremente julgados pela sociedade. E melhor ainda para o Estado que está, constitucionalmente, acima de crenças e dogmas, o que permite ao governo desenvolver as políticas sociais que julgar mais convenientes, inclusive as práticas de controle da natalidade ou de saúde pública, como a campanha em defesa do uso de preservativo para controle de doenças venéreas, incluindo a aids. As declarações dos cardeais do Rio, do ponto de vista político, refletem a mudança ocorrida nos últimos 30 anos tanto na Igreja quanto no processo político institucional brasileiro. Naquela época, nos anos 70, prevalecia no país um catolicismo mais preocupado com o ser humano, independente de ter comungado ou não, de ter ou não se confessado ou de rezar antes de dormir. Predominavam as idéias da Teologia da Libertação, uma corrente aberta às questões sociais do mundo real e menos dependente dos dogmas tradicionais. Na política, vivia-se o rigor dos tempos da ditadura que via, entre seus piores inimigos, justamente Lula, protegido então pela própria Igreja. Lula virou presidente, sem traumas políticos, e a Igreja tornou-se cada vez mais conservadora.

Enquanto questionavam o catolicismo de Lula, clérigos permaneceram em silêncio diante da chacina ocorrida no Rio de Janeiro

São movimentos cíclicos que ocorrem ao longo da História, em qualquer parte. Mas não dá para fechar os olhos ao retrocesso em que se fechou a doutrina da Igreja, em contraste com as questões de ordem prática que passaram a exigir, no mundo, soluções objetivas e urgentes. É o caso da aids, que no Brasil não tem a relevância da violência urbana e rural, mas que é em outras regiões do mundo uma verdadeira catástrofe a qual a Igreja tem ignorado. Nada menos do que dois milhões de pessoas, segundo estimativas do FMI e do Banco Mundial, devem morrer este ano de aids nos países da África Subsaariana. A região comporta pouco mais de 10% da população mundial, mas abriga dois terços da população global classificada como soropositiva. Nada menos do que 25 milhões de pessoas nessa área vivem hoje infectadas com o vírus HIV, boa parte transmitida através de relações heterossexuais, o que explica a enorme quantidade de mulheres, até mesmo grávidas, infectadas. O caso mais grave é o da África do Sul, com 5,3 milhões de portadores do vírus, seguida da Nigéria, com 3,6 milhões e do Zimbabwe, com 1,8 milhão de pessoas infectadas. Os dados são de 2003 e a fonte é o Departamento de Estatísticas dos Estados Unidos, que monitora as informações sobre aids desde 1987. Essa dramática situação não tem implicações apenas na mortandade precoce de adultos em condições, ressalte-se, de extremo sofrimento. Repercute na área fiscal dos governos porque requer maiores gastos com programas de prevenção e de tratamento. Deteriora a qualidade do capital humano, além de contribuir para agravar a pobreza e aumentar a desigualdade de renda entre os mais afortunados, com acesso à informação, e os mais desprovidos de recursos. A aids também tem sido responsável por profundas mudanças demográficas. Calcula-se que, do total de 143 milhões de crianças (idade até 18 anos) órfãs contabilizadas em países em desenvolvimento da África, Ásia, América Latina e Caribe, em 2003, 15 milhões perderam um dos pais por aids. Mas, quando se foca na região africana ao sul do Saara, percebe-se a gravidade absoluta da situação: ali, 12,3 milhões de órfãos, do total de 43,4 milhões na área, representam crianças que perderam um dos pais com o vírus HIV. Melhor faria a Arquidiocese do Rio de Janeiro se encabeçasse uma campanha para a compra e distribuição de "camisinhas" às populações dos países mais suscetíveis à propagação da aids. Afinal, a palavra católica vem do grego "katholicós" e significa "universal" em sentido amplo. Quanto ao presidente Lula, se é ou não um bom católico, é um problema que deve ficar confinado às relações que tem com sua própria consciência.