Título: Nepotismo consagra as práticas antidemocráticas
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 14/04/2005, Política, p. A6

A abertura da economia, levada a efeito na última década, revolucionou a produção industrial, modernizou o mercado financeiro, levou a informação aos quatro cantos do país e disseminou o consumo tecnológico. Visto de longe, o Brasil é um país moderno. De perto, no entanto, nem as novas tecnologias, nem a convivência obrigatória com outras culturas - que a tecnologia da informação trouxe para dentro de casa - abalaram a cultura política brasileira. Ela está onde sempre esteve. O patriarcalismo está encrustado na nosso cotidiano político. A discussão sobre o nepotismo torna o patriarcalismo um ente quase palpável. Justiça seja feita, o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti (PP-PE), com sua militância a favor da prática, apenas expõe um problema dado, que existe e, salvo uma reação consequente da sociedade contra ela, persistirá. Levantamento recente feito pela "Folha de S. Paulo" revela que 96 das esposas dos 391 deputados que se declaram casados estão empregadas na Câmara. No Senado, segundo matéria publicada na edição de ontem do jornal "O Estado de S. Paulo", pelo menos 70% dos 81 senadores empregam parentes. É do presidente da Câmara, que emprega vários parentes e, na semana passada, conseguiu nomear um filho para a superintendência federal da Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Pernambuco, a frase: "Se tivesse mais filhos, mais filhos colocaria". No próximo ano, completa 70 anos a publicação de "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque. Continua uma radiografia atualíssima da sociedade patriarcal. O "brasileiro cordial" descrito pelo historiador estende para a sociedade os tentáculos de padrões familiares de sociabilidade: as relações pessoais de amizade, inimizade, favor e punição passam a definir as relações políticas. As relações de poder patriarcais são tecidas em proveito pessoal; e os que ficam fora deste tecido estão ao desamparo da lei. Nessa arcaísmo social, não é de se espantar que a família invada o próprio público, sob os mais diversos argumentos. É de Severino a máxima: "Essa história de nepotismo é coisa para fracassados e derrotados que não souberam criar seus filhos. Eu criei bem meus filhos, que têm universidade, e agora estou indicando o José Maurício (o nomeado pelo ministro da Agricultura)." Os brasileiros com curso universitário, desempregados, por essa lógica, são fracassados pelo simples fato de não possuírem um pai político que possa lhes prover um emprego. É do ministro do Tribunal de Contas da União, Lincoln Magalhães, a pérola a favor do nepotismo: "Eu acho que você não pode fazer essa distinção, essa discriminação contra a família legalmente constituída. A família é um dos grandes pilares da sociedade. Não acho que seria certo discriminar a família, acho negativo e que estaríamos cometendo uma inconstitucionalidade". Felizmente, Magalhães foi afastado da função de relator da representação do Ministério Público do Distrito Federal contra a contratação de parentes por Severino e pelos deputados Ciro Nogueira (PP-PI) e Efraim Moraes (PFL-BA), devido a essa declaração. A prática, arraigada na vida institucional brasileira, se dissemina por todos os poderes, partidos e rincões desse país. O relator especial da ONU sobre o Poder Judiciário, Leandro Despouy, enumerou o nepotismo entre as causas da ineficiência da Justiça brasileira. Apenas o Supremo Tribunal Federal (STF) tem, no seu regimento, a proibição expressa de contratação de parentes. Os novos vereadores da Câmara paulistana assumiram contratando os seus; em Ilha Bela, o prefeito foi empossado e empregou a família; o prefeito de Itu propôs, e os vereadores aprovaram, lei permitindo o nepotismo. Nem a ministra Marina Silva, acima de qualquer suspeita, escapou da prática: o marido foi contratado pelo seu suplente no Senado. A modernidade, dizia Sérgio Buarque, dependia de enterrarmos esse passado eternizado pelo patriarcalismo. A cultura arcaica nos afastava da democracia - e a superação dessa cultura seria a nossa revolução democrática. A nossa modernidade, passados 70 anos, ainda depende disso. A sociedade brasileira - e sua representação político-institucional - devem superar esse atraso histórico, separando, em definitivo, o público do privado. A política personalista, do proveito pessoal, é desorganizadora. Ela divide os brasileiros entre os que tem acesso ao poder e os que não tem. Ela os torna desiguais.