Título: Combate a cartel é contestado
Autor: Fernando Teixeira
Fonte: Valor Econômico, 05/10/2004, Legislação, p. E-1

As novas práticas que vem sendo introduzidas desde 2003 pela Secretaria de Direito Econômico (SDE) na investigação e no combate à formação de cartéis, ainda que bem recebidas como forma de repressão a essas condutas, podem estar munindo as próprias empresas de argumentos para contestar na Justiça futuras decisões do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). O uso de mandados de busca e apreensão, escutas telefônicas, a cooperação do Ministério Público e da polícia e os acordos de leniência são algumas das novidades que, segundo alertam advogados da área criminal e concorrencial, podem trazer problemas para as decisões do sistema de defesa da concorrência. Por enquanto a contestação a essas práticas tem sido feita administrativamente, com pedidos de impugnação de provas que são apreciados pela própria SDE. Nenhum deles foi aceito até agora, mas, segundo especialistas, há poucas dúvidas de que essas questões sejam reapreciadas pelo Judiciário no caso de as empresas serem condenação pelo Cade. Em seminário realizado na semana passada pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), o secretário de defesa econômica, Daniel Goldberg, foi questionado sobre algumas dessas iniciativas. A forma como ocorre a cooperação do Ministério Público, o uso de escutas telefônicas e os acordos de leniência foram pontos que suscitaram dúvidas. De acordo com a Constituição Federal, a violação do sigilo com o uso de escutas telefônicas só pode ocorrer dentro de uma ação criminal. Mas, segundo Daniel Goldberg, a obtenção dessas informações tem sido feita por meio do Ministério Público, que abre um inquérito criminal partindo de informações oferecidas pela secretaria. A partir daí, há uma espécie de troca de dados entre os dois lados do caso, o criminal e o administrativo. A questão é saber se, uma vez obtidas no inquérito, as conversas telefônicas podem ser usadas na ação administrativa. Para o secretário, o empréstimo de provas é legítimo, o que é respaldado, inclusive, em precedente do Supremo Tribunal Federal (STF). O advogado criminalista Arnaldo Malheiros Filho também observou uma possível quebra de independência do Ministério Público ao envolvê-lo nas investigações de interesse da SDE e, principalmente, ao designar promotores próprios para esses casos. Goldberg diz que o que ocorre, na realidade, é uma especialização de alguns quadros nesse tipo de processo. Em São Paulo, diz, a SDE ajudou a formar três promotores para atuar no combate à formação de cartéis. De acordo com o secretário, a abertura de processos criminais também é importante porque as punições administrativas podem não ser suficientes para desestimular os cartéis. "A multa é limitada de 1% a 30% do faturamento da empresa no ano anterior. Quando se leva em conta a probabilidade de ser pego e a margem de lucro obtida com a formação do cartel, é mais negócio fazer o cartel", diz. De acordo com Malheiros, o programa de leniência também tem problemas do ponto de vista legal. À SDE, diz, não caberia garantir que o Ministério Público não irá abrir um inquérito criminal contra a parte que denunciou o cartel, já que estaria ferindo o princípio da obrigatoriedade, o que, para Goldberg, também é um princípio que precisa ser melhor discutido. O advogado José Inácio Franceschini, do Franceschini e Miranda Advogados, que atua em favor de empresas em alguns desses casos investigados pela SDE, diz que já vem tentando impugnar algumas provas na própria secretaria, sem sucesso. Ele acredita que é provável até que o Cade se posicione em favor desse entendimento, mas, uma vez havendo a condenação, certamente haverá recurso à Justiça. Outro problema identificado por Franceschini é a mistura da competência federal e estadual nas investigações. O uso do Ministério Público, da polícia e da Justiça estadual em um caso que é de competência federal também é, na sua opinião, algo que prejudica a validade das medidas adotadas. Ainda que acredite que a secretaria está no caminho certo ao focar a atuação na repressão aos cartéis, e menos nos atos de concentração, o advogado alerta que a adoção de práticas questionáveis pode prejudicar todo o trabalho, caso as contestações sejam aceitas pela Justiça no futuro.