Título: Qual independência o Congresso quer ter?
Autor: Fernando Luiz Abrucio
Fonte: Valor Econômico, 18/04/2005, Política, p. A10

Como no grito do Ipiranga, os novos presidentes Câmara e do Senado têm reclamado pela maior independência do Legislativo em relação ao Executivo federal. Trata-se, em si, de um fato louvável, levando-se em conta dois aspectos: a tradição autoritária do país, da qual decorre o fechamento do Congresso em alguns períodos de nossa história, além do abuso das Medidas Provisórias e de toda sorte de prerrogativas legislativas pelos presidentes da redemocratização - até regulamentação de Emenda Constitucional foi objeto de MPs. Mas os anseios por maior autonomia são ambíguos: por vezes representam a busca por maior centralidade institucional no sistema político, e noutras, relacionam-se mais à barganha por cargos e por maior participação no projeto político da reeleição. Todos os candidatos às Presidências da Câmara e do Senado, incluindo Luiz Eduardo Greenhalgh, prometeram fortalecer o Legislativo no jogo entre os Poderes. O senador Renan Calheiros demonstrou maior entrosamento com o Governo Lula, mas logo de cara, em atitude bastante elogiável, propôs que o Congresso tomasse para si a meta de fazer a reforma política, afirmando positivamente as suas funções. Seja pela defesa dos interesses corporativos, seja por sua posição de outsider no tabuleiro político, Severino Cavalcanti começou o mandato dizendo que, acima de tudo, defenderia os deputados e a instituição parlamentar, independentemente da disputa do governo com a oposição. Passados dois meses, eles cumpriram em parte o prometido, mas ainda são muito inspirados pela tentativa de aumentar o poder dos políticos ligados a eles nos espaços do Governo Federal. Quando o Congresso procura modificar as regras que regem a lógica legislativa das Medidas Provisórias, trata-se, em princípio, de uma ação capaz de aprimorar nossa democracia. Basta observar o número de MPs que estão trancando a pauta congressual e a irrelevância de alguns de seus aspectos, para então concluir que o Executivo federal tem por vezes ultrapassado sua alçada. E mesmo em questões essenciais, para as quais o governo deve ter sim um poder legislativo diferenciado, há uma prática reiterada de mandar textos sem discutir previamente com os atores relevantes da sociedade e com os próprios políticos. Agora, no momento em que os presidentes das duas Casas ameaçam devolver Medidas Provisórias ao Executivo, sem nenhuma base legal que sustente tal ação, o efeito é meramente pirotécnico. Pela experiência política, Severino e (principalmente) Renan sabem disso. É que aqui está em jogo mais a dinâmica de ser ouvido pelo poder de ocasião do que transformar os parâmetros institucionais. Exemplo semelhante pode ser retirado da discussão sobre o Orçamento federal. Na sua forma atual, o Executivo tem grande liberdade para modificar o que foi aprovado no Congresso, por meio do contingenciamento realizado pela Secretaria do Tesouro Nacional. Em sua defesa, dirão alguns que o objetivo desta ação é nobre: garantir o equilíbrio das contas públicas. Ora, o ajuste fiscal terá maior qualidade se for executado de uma maneira mais previsível e transparente. Afinal, os parlamentares foram eleitos para participar ativamente da definição das prioridades do país, ao passo que ninguém, ao que saiba, elegeu os burocratas que fazem cortes lineares nas despesas, inclusive sem justificar as razões de maiores ou menores somas para determinadas políticas. O agir tecnocrático, ademais, não tem nenhum efeito pedagógico sobre a sociedade e muito menos sobre os políticos. Reforço este último ponto: a classe política poderia aprender melhor sobre a escassez e a racionalidade dos gastos públicos se tivesse responsabilidade sobre eles, e não com o seu alijamento do processo.

O difícil é reduzir os cargos em comissão

Tanto isto é verdade que os congressistas acertadamente querem mudar o Orçamento autorizativo que vigora hoje, mas a maioria deles deseja esta mudança para reforçar o viés individualista das emendas parlamentares. A participação do Legislativo no processo orçamentário deve se basear na alocação de recursos a partir de um planejamento prévio, que circunscreva as prioridades no campo das políticas públicas e na esfera regional. A grande mudança no Orçamento ocorrerá quando os parlamentares participarem da montagem da agenda governamental em vez de pleitearem verbas para seus municípios. Não se pode negar que a mera manifestação de maior autonomia por parte dos presidentes da Câmara e do Senado, como vem ocorrendo, ative um mecanismo de freios e contrapesos ao poder do Executivo, o que favorece um processo decisório mais democrático. Ao contrário do senso comum espalhado pela mídia e pelo mercado, o melhor sistema político não é o que decide rapidamente, com o governo aprovando todos os seus projetos sem grandes obstáculos ou modificações. Os exemplos da Lei de falências, das PPPs - com um papel importantíssimo do senador Tasso Jereissati - e da Lei de Consórcios revelam que maior debate e negociação são elementos que podem fortalecer as instituições e consolidar crenças na classe política, evitando retrocessos - como também foi o caso da conceito de responsabilidade fiscal, maturado por anos no Congresso. Porém, os gritos de independência do deputado Severino Cavalcanti e do senador Renan Calheiros têm se confundido demasiadamente com suas pretensões de poder junto ao governo de ocasião e com suas ambições no processo eleitoral de 2006. A distribuição de cargos, sobretudo, tem determinado o humor de ambos. Por isso, se quiserem atuar efetivamente em prol do fortalecimento do Congresso, proponho a seguinte medida: comecem a articular um movimento político, incluindo a sociedade, para reduzir os cargos em comissão de livre provimento. Todos os governos democráticos precisam ter em suas mãos postos de comando para fazer valer as idéias aprovadas pelas urnas; contudo, no Brasil a politização da burocracia chegou a níveis inaceitáveis. Aprovar a Lei contra o nepotismo é um avanço, mas ela não altera o essencial: estar com cargos no Executivo é o que basicamente motiva a carreira de nossos políticos. Sem mudar isso, o Congresso ficará com o grito de independência preso na garganta.