Título: Carta aos exportadores
Autor: Maria Cristina Fernandes
Fonte: Valor Econômico, 15/04/2005, Política, p. A7

O texto de 44 páginas que o PT começou a discutir no fim de semana passado - "Bases de um projeto para o Brasil" - oferece luzes sobre os rumos que guiarão o partido na sua tentativa de reconduzir Lula à Presidência. O termo 'exportações' aparece nove vezes, a maior parte delas em trechos laudatórios ao dinamismo conferido pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva a esse setor. Ocorrência bem mais acanhada tem o termo 'distribuição de renda'. Aparece duas vezes. Empenhados em reconciliar os liderados do ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, com a política econômica do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, os petistas esmeraram-se em valorizar sua experiência no poder. O termo salário, por exemplo, aparece apenas duas vezes - no trecho em que se diz que a educação de qualidade não se resume a uma questão de salário e quando se elogia a política de crédito consignado com desconto em folha de salário. Não se fala em recuperação do valor do salário-mínimo. A auto-citação do partido sempre por sua sigla esvaziou muito a participação do termo 'trabalhadores' no documento. São sete ocorrências. É ultrapassado, de longe, pela palavra 'empresas'. Quase sempre associadas às políticas de exportações fomentadas por este governo e a serem perseguidas num eventual segundo mandato, as empresas brasileiras são citadas 15 vezes ao longo das extensas teses petistas. O partido parece disposto a dissipar as dúvidas que sua experiência no poder possa ter gerado no eleitorado. O termo 'estabilidade', por exemplo, aparece sete vezes no documento. Parece pouco, mas é mais do que o dobro da ocorrência da palavra 'injustiça'. Para que seus novos compromissos alcancem a maioria do eleitorado, o PT está certo de que precisa ampliar seus parceiros. A ênfase na abertura do partido a uma nova composição eleitoral é diretamente proporcional à resistência interna petista à cessão de espaços. O termo 'aliança' aparece 15 vezes. O documento revela-se também pelas suas omissões. Reunido apenas uma semana depois da chacina que matou 30 jovens pobres e inocentes na Baixada Fluminense, o PT esqueceu-se de discutir o combate à violência no país. Foi essa omissão que mais chocou Paulo Baia, professor do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autor de tese acadêmica sobre a evolução do discurso petista nos documentos do partido. É dele a constatação de que a "Carta ao Povo Brasileiro", de junho de 2003, não é fruto de uma conversão do partido, mas de uma evolução de discurso que acompanha o PT desde sua fundação. Nas notas em questão, percebe, por exemplo, que é a primeira vez em que o partido não fala mais em propor um novo modelo para o país. Limita-se a sugerir um "novo padrão de desenvolvimento".

Documento revela-se por suas omissões

Até ser votado pelo partido no fim do ano, essas teses petistas ainda serão modificadas por emendas e pelas negociações em torno da recandidatura de José Genoino à presidência da sigla em setembro. Mas não deixa de ser surpreendente que o chamado "campo majoritário", que engloba 65% dos petistas, entre os quais as principais cabeças que hoje dirigem o governo, elabore um texto de 44 páginas em que as contas externas do país merecem acurada análise, além de uma chuva de estatísticas, e a política de segurança seja solenemente ignorada. Reconhece-se a importância do equilíbrio fiscal para a inserção internacional do Brasil, mas, nem pelos danos à imagem externa do país, o assassinato da freira americana Dorothy Stang merece citação. O professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Emir Sader, chama atenção para o fato de o PT auto intitular-se "partido democrático de esquerda", denominação semelhante à assumida pelo ex-PC italiano, que tornou-se Partido Democrático de Esquerda e depois, simplesmente Esquerda Democrática (Democrazia di Sinistra-DS). Sader não é eleitor do campo majoritário. Provavelmente apoiará Plínio de Arruda Sampaio se este se lançar candidato à presidência do PT, pulverizando ainda mais a esquerda petista que já tem dois candidatos - o 3º vice-presidente do PT, Valter Pomar (Articulação de Esquerda, representada no governo pelo ministro da Pesca, José Fritsch), e o ex-prefeito de Porto Alegre, Raul Pont (Democracia Socialista-DS, cujo expoente no governo é o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto). O intelectual petista apóia, no entanto, a busca de uma aliança mais ampla com o PMDB como saída para a reeleição de Lula. O documento não menciona o partido mas é enfático na necessidade de ampliar alianças ao centro e rígido na cobrança de disciplina interna em relação às decisões partidárias. As chances de que as rebeliões dos PTs estaduais contrários a alianças com o PMDB venham a contaminar a aprovação deste documento ficam minoradas pelo calendário petista. O documento será aprovado em dezembro e a política de alianças será selada no semestre seguinte. Editor do boletim da fundação petista Perseu Abramo, eleitor da DS e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Juarez Guimarães vê na incorporação crítica da prática de governo pelo partido potencial de impacto semelhante àquele do primeiro documento petista depois da queda do muro de Berlim. Critica, no entanto, a miopia histórica do PT ao propor um caminho alternativo entre "as práticas excessivamente intervencionistas que marcaram a atuação do Estado nos anos 50, 60 e 70" e "a esteira de desilusões dos anos 90 proporcionadas pelo neoliberalismo". Diz que o PT confunde o nacional desenvolvimentismo dos anos 50 e 60 com a cartilha econômica da ditadura militar. É como se igualassem Celso Furtado a Roberto Campos e Delfim Netto, diz Guimarães. Ou talvez seja pior que isso. Encontra-se, finalmente, uma explicação por que Celso Furtado morreu sem que o partido lhe desse mais ouvidos e Delfim Netto tenha se transformado em um de seus arautos.