Título: Políticas sociais e moral desgastam relação Lula x CNBB
Autor: Dermi Azevedo
Fonte: Valor Econômico, 15/04/2005, Especial, p. A12

Em dois anos de governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva alargou os extremos da relação entre a Igreja e o Estado no Brasil. Em 50 anos de existência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Lula foi o primeiro presidente a reunir-se com a absoluta maioria do episcopado (305 cardeais, arcebispos e bispos de todo o país, de um total de 414) numa visita do presidente à assembléia atual da entidade em Itaici, interior de São Paulo, em maio de 2003. Desta visita até hoje as relações o governo e a Igreja só pioraram. A declaração de d.Eusébio Scheid, cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, vinculando o "catolicismo caótico" do presidente à sua origem operária, já pode ser considerada uma das mais duras já dirigidas por um integrante do episcopado brasileiro ao presidente da República. Apesar de não refletir o pensamento dominante no clero brasileiro, d. Scheid foi motivado por uma crescente insatisfação da Igreja em relação a temas como aborto, controle de natalidade e pesquisas com célula-tronco. Além das discordâncias no campo da moral, a relação entre a Igreja e Lula foram fragilizadas pelas políticas sociais do governo. As pastorais sociais católicas, que foram o principal núcleo da mobilização popular que levou Lula ao Planalto, em 2002, romperam com o governo por causa da ortodoxia da política econômica. As bases da Igreja participaram integralmente da campanha presidencial e os bispos, de modo geral, deram-lhe apoio, embora mais reservado. A CNBB publicou documento, no final de 2001, sobre as eleições de 2002, que foi lido em todas as missas celebradas nas paróquias brasileiras, afirmando que o Brasil vive "uma das mais perversas distribuições de riqueza do planeta" e que a solução dos problemas sociais "depende mais da distribuição da riqueza do que do seu crescimento". Para a Igreja, o Brasil deveria definir, no novo mandato presidencial, um "projeto nacional próprio" e "assumir um papel de líder" no processo de integração latino-americano. O documento apontou, também, três metas que os bispos consideram prioritárias, na realidade brasileira: a erradicação da fome, o efetivo respeito dos direitos humanos para todos e o desenvolvimento sustentável, que garanta qualidade de vida à população e que respeite o meio ambiente. A vitória de Lula foi recebida com euforia pelas pastorais sociais e pelas bases e com um aberto otimismo por parte dos episcopado. Um grupo de bispos progressistas chegou a planejar a organização de um comitê episcopal de assessoria ao governo Lula, reeditando, em tempos democráticos, a experiência das comissões Igreja-Governo, durante o regime militar. O grupo só conseguiu realizar poucas reuniões. Nas duas visitas oficiais que fez aos bispos - uma à sede da CNBB, em Brasília, ainda antes de sua posse e outra à Assembléia Geral da conferência, em Itaici (SP) em 1º de maio de 2003 -, a primeira mensagem dirigida a Lula foi a de que a Igreja considera-se, na atual realidade brasileira, como "parceira e também parteira de vários movimentos sociais". No encontro reservado com os bispos, Lula ouviu, primeiro, o discurso do então presidente da CNBB, d. Jaime Chemello, que destacou a "legítima autonomia da autoridade civil" e a decisão da Igreja de colaborar com o governo "de forma crítica e livre, em defesa da vida, da família e da justiça social". Logo depois, Lula fez o seu discurso, durante uma hora e meia, em que relembrou sua história de vida e em que pediu a colaboração da Igreja para seu mandato. Citou como preocupantes a desagregação da juventude e da família. Passou, então, a palavra a seus ministros, que resumiram as prioridades de suas pastas. Lula ouviu dos bispos a opinião de que o futuro de seu governo dependeria da adesão às suas propostas, da grande massa popular, ou seja, segundo Chemello, "daquela massa que nunca foi organizada nem politizada, que é desprezada e se despreza a si mesma e que só tem uma consciência política imediata". O bispo destacou que a retomada do crescimento econômico "é uma condição necessária (embora não suficiente) para uma efetiva mudança social". Lula voltou a se encontrar com a CNBB em 23 de fevereiro deste ano. Foram tratados três temas: a violência no campo, a pesquisa com as células-tronco e a descriminalização do aborto. Os bispos pediram a Lula proteção policial para o frade dominicano francês, Henri de Roziers, que trabalha na Pastoral da Terra em Tocantins e tem a cabeça a prêmio por R$ 100 mil. Na questão do aborto, ele garantiu aos bispos que, do seu governo não partirá nenhuma iniciativa para a descriminalização. Também pediram pressa para a homologação da posse de terras indígenas no país . O encontro durou três horas. Participaram D. Geraldo Magella, o secretário-geral da CNBB, d.Odilo Scherer, e o presidente da comissão episcopal para a vida e a família, d. Rafael Cifuentes. Do governo, além de Lula, participaram os ministros Luiz Dulci (secretaria geral do governo), Marina Silva (meio ambiente), Miguel Rosseto (reforma agrária) e Patrus Ananias (desenvolvimento social). Esse encontro já se deu sob franco declínio do otimismo católico com o governo Lula. No final do primeiro ano de governo, ainda coexistiam, entre os bispos, duas correntes de opinião sobre o novo governo: a primeira, integrada pelos bispos que interpretavam a opção econômica ortodoxa de Lula como uma mera tática, destinada a garantir a governabilidade e de caráter transitório; a segunda, minoritária, já distinguia, na política econômica governamental, sinais de uma escolha definitiva. Nas bases, manifestavam-se os primeiros sinais de insatisfação. O primeiro bloco a criticar a política do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, foi o dos intelectuais, entre os quais juristas, como Fábio Konder Comparato e ex-parlamentares católicos, como Plínio de Arruda Sampaio, além de líderes sindicais; entre eles, o metalúrgico paulista Waldemar Rossi, que discursou para o papa, em sua primeira visita ao Brasil, em 1980. No segundo aniversário do governo Lula, essas tendências consolidaram-se. Muitos militantes católicos desfiliaram-se do PT, em grande parte, insatisfeitos com o processo de rotinização do partido. Esse distanciamento se dá 25 anos depois da primeira visita do papa ao Brasil, em 1980, que fez parte da estratégia de pressão da Igreja em favor de uma transição definitiva para a democracia. Os discursos pontifícios - cujos textos foram redigidos, em conjunto, pelo Vaticano e pela CNBB - refletiram as preocupações sociais, políticas e econômicas da Igreja, diante da nova fase da história brasileira, que se prefigurava como democrática. Em São Paulo, o Papa encontrou-se com Lula e com outros representantes do movimento operário, protagonistas das grandes greves de 1978, 1979, 1980, que tiveram uma significativa influência no processo de abertura e fortalecimento da sociedade civil. Lula desenvolveu a sua liderança sindical e se aproximou da Igreja por meio das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). O principal responsável por essa aproximação foi o religioso dominicano frei Betto, que foi, entre 1970 e 1990, assessor da Pastoral Operária na região do ABC. Hoje, 25 anos depois, frei Betto continua amigo de Lula, mas já deixou Brasília. Confidenciou aos seus confrades dominicanos que tinha se tornado impossível assessorar Lula, sem aceitar a política econômica do seu governo.