Título: Muita gesticulação na política externa
Autor: Cristiano Romero
Fonte: Valor Econômico, 20/04/2005, Brasil, p. A2

O fracasso da candidatura brasileira para o comando da Organização Mundial do Comércio (OMC) expôs a fragilidade do viés sul-americano da política externa do governo Lula. Nem os países vizinhos apoiaram o Brasil. Muito pelo contrário. Eles questionaram a alardeada liderança regional do "gigante do Atlântico Sul" e apoiaram o candidato do Uruguai, Carlos Perez del Castillo. É visível na movimentação dos sul-americanos a demonstração de ressentimentos. No caso da Argentina, há razões para isso. O governo brasileiro, mesmo tendo eleito o Mercosul como prioridade das prioridades da política comercial, deu de ombros quando o país vizinho mais precisou. Durante os embates da Argentina com o FMI e ao longo do processo de renegociação de sua dívida junto aos credores privados, o Brasil agiu como se a nação vizinha se localizasse no outro lado do planeta. Um certo pragmatismo tolo levou as autoridades brasileiras a temerem que, apoiando a Argentina, os mercados entendessem que também o Brasil daria um calote na dívida. Justiça seja feita, o pecado aqui não foi responsabilidade exclusiva da diplomacia, mas certamente ela poderia ter atuado de forma mais incisiva para mudar a postura do governo. O silêncio brasileiro e o relativo sucesso da reestruturação da dívida argentina levaram o presidente Néstor Kirchner a estimular o ressentimento de argentinos contra brasileiros. "O Brasil não se comportou de forma solidária com a Argentina. Houve no país até uma imensa torcida para que a Argentina quebrasse. De certa maneira, Kirchner não se saiu mal. Ficou o ressentimento", diz um embaixador experiente. Na América do Sul e na África, continente que o presidente Lula visitou quatro vezes em dois anos e quatro meses de mandato, a diplomacia tentou firmar a idéia de que o Brasil é uma potência com disposição e recursos para ajudar os países em seu processo de desenvolvimento. A verdade é que o país não dispõe desses recursos, conhecidos na linguagem diplomática como "excedentes de poder". No Itamaraty, há quem acredite em sua existência. Num de seus textos - "Os Donos do Poder: a Macro-Estrutura" -, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, o segundo na hierarquia do serviço diplomático, afirma que o Brasil é vulnerável política e militarmente, entre outras razões, porque, por convicção ideológica, "certas elites" acreditam que o país tem escassez de poder. Essas elites não confessam, diz Samuel, mas elas defendem a necessidade de alinhamento político com os Estados Unidos. "Um país só pode de fato liderar quando seu excedente de poder nacional é de tal ordem que ele é um líder natural. O Brasil não tem isso. Não põe dinheiro nos países vizinhos e na África, não põe serviço de inteligência, não tem investimentos. Então, a nossa política fica na retórica", comenta um especialista em política internacional. "Quando os EUA querem fazer algo com a Colômbia, eles fazem. Derrubam governos, põem outros no lugar. Colocam inteligência, ajudam no Banco Mundial, etc. Eles têm um arsenal que não temos."

Diplomacia é trunfo político interno

O exercício da liderança, sem recursos, provoca desgaste. Quando assumiu o poder, estimulado pela diplomacia, Lula prometeu mundos e fundos aos países vizinhos. Não cumpriu, apesar de toda a boa vontade. Lula acabou rompendo com uma tradição valiosa do Itamaraty: a de não procurar o exercício da liderança porque, como conseqüência dessa busca, vêm a retaliação, o ressentimento, a inveja. "Estamos com um excesso de gesticulação. Há um hiperativismo, um jogo em muitos picadeiros", observa um diplomata experiente. Desde o início do governo, houve anúncios de muitos objetivos antes que eles pudessem ser atingidos. O Brasil pode até entrar para o Conselho de Segurança da ONU, mas, se isso acontecer, será por decantação e não fruto de uma campanha aberta como a que vem sendo feita. A própria campanha gera ressentimentos. Os argentinos e os mexicanos não nos querem ver com assento no Conselho, assim como os chineses rejeitam os japoneses e os italianos, suecos e espanhóis refutam os alemães. Outras aventuras da política externa, como a organização de uma cúpula das nações sul-americanas com os países árabes, expõem o Brasil a constrangimentos. Não há, no planeta, nada mais complexo que o mundo árabe. Ao organizar a cúpula, os brasileiros não consultaram Israel, um Estado que, ao lado do Vaticano e dos Estados Unidos, tem forte influência interna no Brasil. Como é uma reunião com os países árabes, Irã e Turquia não foram incluídos. A cúpula não é tampouco islâmica. A rigor, portanto, não pode sequer ser considerada uma cúpula com os países do Oriente Médio. "Essa cúpula é casamento de jacaré com cobra d'água. Não é natural. Não é algo que brote da necessidade do comércio, de um entendimento próprio, presumível", questiona um embaixador. A política externa, dizem os especialistas, não chega a ser grave, perigosa nem ameaçadora. Preocupado com essa percepção, o ministro da Casa Civil, José Dirceu, há alguns dias foi a Washington avistar-se com a secretária de Estado, Condolleezza Rice, para assegurar-lhe que o governo Lula, mesmo com toda proximidade com o venezuelano Hugo Chávez e o cubano Fidel Castro, não representa uma ameaça à democracia nem aos interesses dos EUA na região. O maior risco da diplomacia neste momento é levar o país a acumular derrotas, como a que aconteceu na OMC e a que poderá vir a ocorrer na ONU. Se falta objetividade à diplomacia neste momento, sobra-lhe utilidade política. Fazendo na economia o que nunca pregou, o governo Lula refugia-se na política externa para dialogar com sua base político-eleitoral. Uma política externa de esquerda, ainda que ineficiente, é útil para o discurso interno de Lula. É nesse contexto que devem ser vistas suas visitas constantes ao continente africano - aliás, a julgar pelo sentimento anti-brasileiro que reina neste momento em Angola, Lula já deve estar planejando sua próxima viagem à Luanda.