Título: Governo vai obrigar órgãos públicos a usar softwares livres
Autor: Cristiano Romero e Juliano Basile
Fonte: Valor Econômico, 22/04/2005, Especial, p. A12

Depois de tentar por dois anos convencer os órgãos públicos a migrarem para o software livre, o governo planeja agora dar um passo ousado e polêmico: obrigar todas as repartições públicas federais a adotarem softwares de código aberto, como o Linux e o FreeBSD. Uma proposta de decreto, estabelecendo a obrigatoriedade, já tramita na Casa Civil. O decreto obriga os órgãos do governo a adotarem softwares livres, numa primeira etapa, em quatro áreas de uso: nos sistemas operacionais para servidores e estações de trabalho ("desktops"); nos aplicativos de escritório (editores de texto, planilha e de apresentação); nos programas de navegação de internet; e no correio eletrônico. Os ministérios e órgãos públicos que desejarem manter softwares proprietários (de código fechado, como o Windows) em seus computadores terão, segundo o decreto, de justificar a opção. "Inverteremos o padrão, que hoje é usar software proprietário. Para continuar assim, os órgãos públicos terão de ter boas justificativas", comentou o presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI), Sérgio Amadeu. A administração de tecnologia da informação no governo é inteiramente descentralizada. Cada ministério e órgão escolhe seus sistemas e máquinas. Vinculado à Casa Civil, o ITI foi criado para definir as políticas estratégicas do governo nessa área. Uma dessas políticas tem sido, desde o início do governo Lula, estimular a migração para o software livre. Segundo documento do Ministério da Ciência e Tecnologia que embasou a elaboração da política industrial do governo Lula, os softwares livres são considerados geradores "de inovação contínua e de absorção do conhecimento tecnológico". "O governo pode usar seu poder de compra para fazer política tecnológica", justificou Amadeu. "Precisamos do decreto porque o 'lobby' contrário (ao software livre) é muito poderoso", disse. O presidente do ITI informou que a proposta de decreto estabelecendo a obrigatoriedade do software livre foi discutida durante mais de um ano pelo Comitê de Implementação do Software Livre, criado pelo governo federal. A proposta, segundo Amadeu, tramita há três meses na Casa Civil. Consciente de que a decisão é polêmica e pode suscitar questionamentos judiciais, Amadeu decidiu encomendar à Fundação Getúlio Vargas (FGV) um parecer sobre a legalidade do decreto. "Estamos no terceiro ano de governo. Precisamos de uma norma, um decreto da presidência da República, para avançar", disse o dirigente do ITI. Em 2003, o ministro da Casa Civil, José Dirceu, baixou portaria recomendando aos gestores públicos que passassem a adotar softwares de código aberto. Há resistências em inúmeros setores da administração pública à mudança. Levantamento feito pelo Valor mostra que, de um total de 22 ministérios (os 14 restantes são secretarias ligadas à presidência da República), apenas sete estão usando softwares livres em seus sistemas operacionais. Dos que usam, apenas dois - Cidades e Cultura - utilizam apenas softwares livres (no caso, Linux). Os cinco restantes combinam o uso de programas livres com softwares proprietários. A maioria dos ministérios ainda usa versões de Windows, o sistema operacional produzido pela Microsoft. O Palácio do Planalto, local de trabalho do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, opera na plataforma Windows 2000. Curiosamente, nos Estados Unidos, a pátria da Microsoft, os principais órgãos públicos, inclusive a Casa Branca, o local de trabalho do presidente George W. Bush, operam com softwares livres. O ITI conseguiu conquistar uma adesão importante ao seu projeto. O Instituto convenceu o Serpro, a estatal de processamento de dados do governo federal, a migrar seus sistemas para programas de código aberto. A passagem dos sistemas proprietários para os livres está sendo feita de forma gradativa. O Serpro é responsável hoje também pela coordenação do trabalho de migração os órgãos públicos. A estatal está avançando a transição também em seus próprios sistemas. Hoje, o Serpro tem 60% de suas estações de trabalho em software livre, revelou o diretor Sérgio Rosa. O plano é chegar a 70% até o fim do ano. Rosa disse que a dificuldade para uma adesão de 100% ao software livre no governo federal não é uma questão apenas de resistência, mas de "legado". "Vários ministérios têm os seus sistemas críticos e não podemos apagar o passado para implementar o futuro", explicou ele. Fazem parte dos "sistemas críticos" as bases de dados antigas das quais o governo não pode se desvencilhar. Em geral, são sistemas ultrapassados tecnologicamente, mas cujos dados o governo não pode simplesmente jogar fora. Entre eles, estão o Siafi (o sistema de acompanhamento dos gastos federais), o Sidor (com dados do Orçamento) e o Siape (sistema que administra a folha de pessoal). O Siafi, por exemplo, ainda usa o sistema de banco de dados Adabas. Criado na Alemanha em meados do século XX, o Adabas trabalhava com 800 mil registros. No Brasil, foi testado com 8 milhões e acabou aceito para servir aos órgãos públicos nos anos 80, pois, nessa época, não havia outros sistemas com número de dados suficiente para atender aos volumes de informações produzidos na administração federal. Como o sistema Adabas é proprietário, o objetivo do Serpro é fazer a transferência completa desse sistema para um software livre. "Temos que pagar 'royalties' pelo uso do Adabas", justificou Rosa. O processo de transição é extremamente complicado também devido ao excesso de informações acumuladas pela burocracia governamental. Para solucionar esse problema, o Serpro está desenvolvendo plataformas para a transição ao software livre. É aí onde está o cerne do problema, observou Rosa. "O mundo inteiro discute como fazer essa passagem. Esta é a nossa missão." A transição tem custos. Por isso, o ITI está reivindicando, junto ao Ministério do Planejamento, a liberação de R$ 230 milhões para aplicação nesse trabalho durante dois anos. O Instituto estima que o governo gaste cerca de R$ 300 milhões por ano com o pagamento de licenças de softwares proprietários.