Título: Reflexos do Equador
Autor: Sergio Leo
Fonte: Valor Econômico, 25/04/2005, Brasil, p. A2

A crise no Equador poderá ter sérias conseqüências para a política externa brasileira, nenhuma delas relacionada à decisão do governo, de conceder asilo político ao presidente deposto, Lucio Gutiérrez. A saída rápida de Gutiérrez, amarrado ao compromisso de deixar calado a cena política, é um bem que o governo Lula fez ao claudicante governo de Alfredo Palacio. Pode sepultar o movimento que aliados do presidente deposto iniciavam contra o novo governo. Após ajudar a retirar do palco um ator indesejado por quase todos, o governo brasileiro passa a ter a preocupação de garantir a estabilidade política do Equador, o que, analisam os diplomatas, só se conseguirá com a eleição de um novo governo, que sucederia o do ex-vice-presidente Palacio, sem nenhuma base popular. O mesmo pensa o governo dos Estados Unidos, nada satisfeito com as declarações das autoridades hoje no poder no Equador. Mas essa é, também, a demanda dos grupos indígenas equatorianos, que ajudaram a derrubar os últimos três presidentes do país e não estão nem um pouco satisfeitas com a predominância, no novo governo, de pessoas egressas da região de Guayaquil, mais rica, mais liberal e tradicionalmente rival das forças políticas sediadas em Quito e no centro do país. É essa preocupação em tornar breve o já precário mandato de Palacio que levou o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, a declarar, na sexta-feira, que a sucessão de Gutiérrez não seguiu a constituição equatoriana. Pela mesma razão, a Organização dos Estados Americanos reluta em reconhecer a legitimidade do atual presidente do Equador. Forma-se uma pressão internacional para que o novo governo assuma sua ilegitimidade, e dê lugar a algum arranjo político satisfatório no Equador. O medo da reação popular e a necessidade de ganhar apoio também internamente têm levado o equatoriano Palacio a ensaiar a guinada à esquerda que Gutiérrez se recusou a dar, com promessas de aumento de salários públicos e de uso de fundos vinculados ao petróleo e à previdência para "gastos sociais". A mudança de governo no Equador e o populismo anunciado pelo sucessor de Gutiérrez trazem, porém, interferências ainda desconhecidas nos interesses das empresas brasileiras.

Petrobras enfrenta protestos no país

A Petrobras, que havia anunciado intenção de investir US$ 80 milhões em suas operações equatorianas (resultado da compra da argentina Perez Companc) enfrenta protestos de grupos ecológicos pela concessão do governo Gutiérrez, para explorar petróleo em uma reserva florestal e indígena - onde já atuam outras petrolíferas transnacionais. A Ambev briga para ampliar, de 6% para 30%, a fatia do mercado de cervejas local, que adquiriu com a compra da segunda cervejaria do país. A concorrente Bavária, colombiana, apelou até para uma ação judicial contra o modelo de garrafa com que a Ambev pretendia comercializar a Brahma no mercado equatoriano, e ganhou em primeira instância. A instabilidade política no Equador certamente retarda a conclusão de investimentos resultantes da bem sucedida negociação da dívida equatoriana com o Brasil, sacramentada no começo de abril com uma visita, a Quito, do assessor especial da Presidência, Marco Aurélio Garcia. Em troca do perdão de aproximadamente US$ 40 milhões da dívida com o Brasil, Gutiérrez investiria em projetos a serem financiados pelo BNDES, de compra de aviões da Embraer, construção da estrada entre Quito e o porto de Guayaquil, e construção do aeroporto de Tena, no centro do país (este último alvo de acusações de políticos temerosos de seu uso para ações militares contra o plantio de coca). Não há sinais de que o descontentamento com o asilo ao ex-presidente venha a afetar a imagem das empresas brasileiras. Como já estão às voltas com problemas normais e tópicos com concorrentes e atores políticos do país, sempre poderão ser reféns de algum desentendimento entre Quito e Brasília. Estão, é claro, apreensivas, embora a dimensão econômica do Equador dificilmente traga algum impacto sensível à atuação internacional dessas empresas. A mais afetada por uma deterioração no quadro político equatoriano seria a Odebrecht, que já contava com o contrato da estrada Guayaquil-Quito, de mais de US$ 350 milhões. A ação diplomática do governo brasileiro traz outro tipo de riscos, e também a suspeita de que se abriu mais um campo de conflito na difícil relação com a Argentina. Antes da queda do presidente equatoriano, os diplomatas do governo Néstor Kirchner lembravam que a Argentina está no comando do Grupo do Rio uma instituição de consulta e cooperação política com representantes de toda a América Latina, e se movimentavam para agir em caso de agravamento da crise no Equador. O Itamaraty se antecipou, porém, e logo após a derrubada de Gutiérrez, articulou o que pode ser a primeira ação da recém-criada Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa), que anunciou o envio de uma missão ao Equador. A missão será composta por representantes dos países encarregados de hospedar as reuniões da Casa entre os anos de 2004 a 2006: Brasil, Bolívia e Peru. Já seria uma missão complicada, por incluir um rival histórico do Equador, o Peru, e um outro país com suficientes problemas internos. Incluiu-se a Argentina, como secretária-executiva do Grupo do Rio. Ontem, falando ao jornal argentino "Clarín", o chanceler da Argentina, Rafael Bielsa, já sugeriu que só a OEA deve tratar do tema; assessores de Bielsa criticaram a iniciativa do Brasil. Na OEA ou na Casa, o Brasil, na tentativa de exercer liderança no continente, tem o desafio de descobrir como tratar um governo que assumiu com um golpe de Estado e que contraria os preceitos democráticos recém-incluídos nos acordos disseminados pela região, mas que a ninguém interessa destituir para repor o presidente anterior. Com esse desafio, o Itamaraty terá também a oportunidade de descobrir se ainda é possível alguma ação diplomática no continente feita em comum acordo com o sócio cada vez mais implicante no Mercosul.