Título: Nepotismo não é o principal problema
Autor: Fernando Luiz Abrucio
Fonte: Valor Econômico, 25/04/2005, Política, p. A13

Não queria assustar os leitores logo na segunda-feira de manhã, mas não posso deixar de remar contra a corrente: o nepotismo não é o principal problema da administração pública brasileira. Transformado nas últimas semanas num dos temas mais importantes da agenda política, a proibição da contratação de parentes, se bem definida, pode ser uma medida capaz de reduzir focos de clientelismo e de ineficiência, mas definitivamente não é a questão central no processo de modernização estatal e tampouco deve ser norteada pelo mero moralismo udenista. A reforma do Estado depende de uma gestão pública competente combinada com a criação de mecanismos que tornem os ocupantes de cargos públicos responsáveis por seus atos perante o sistema político e a sociedade. O nepotismo, na verdade, é conseqüência de dois fatores maiores. O primeiro tem origem sociocultural e pode ser definido como personalismo, para usar o conceito cunhado por Sérgio Buarque de Holanda. Trata-se do predomínio de valores e normas privadas no espaço público. Daí vem o familismo, por exemplo, a partir do qual os políticos procuram orientar suas ações para favorecer seus parentes, com cargos públicos ou instalando verdadeiras oligarquias familiares no processo eleitoral - curiosamente, este último ponto tem sido negligenciado no debate atual. Mas não necessariamente as famílias constituem o foco da ação personalista. Como bem definiu Oliveira Viana, no Brasil é fundamental ter amigos para ascender socialmente e obter sucesso na vida pública. Em vez de nomear filhos, cunhadas ou qualquer pessoa com laços sangüíneos, os políticos podem usar a amizade como critério de nomeação. No caso tão comentado do deputado Severino Cavalcanti, ele poderia trocar a nomeação de seu filho pela de um compadre antigo, que tantos votos lhe traz em sua base política. Portanto, a proibição da contratação de parentes não dará conta da questão da competência na distribuição dos cargos públicos. A raiz do problema brasileiro está no excessivo número de cargos em comissão de livre provimento. É preciso entender bem esta expressão, para evitar as confusões que regem o debate atual. Em todos os países democráticos, os políticos eleitos têm a seu dispor uma quantidade, maior ou menor, de postos estatais para os quais podem indicar pessoas de sua confiança, cuja tarefa será a de trabalhar em prol do programa de governo aprovado pelas urnas. Se assim não fosse, governantes com grande aprovação popular poderiam ter suas idéias completamente barradas pela burocracia, a despeito da opinião dos eleitores. Desse modo, poderia haver, em tese, uma casta estatal que impediria qualquer modificação do status quo e seria imune aos controles democráticos. As democracias contemporâneas procuram equilibrar os princípios de Estado com os de governo. Em outras palavras, é preciso ter um conjunto de cargos destinados a uma burocracia permanente e outros que sejam reservados às indicações dos políticos eleitos. Ao contrário do que pode parecer, não há uma dicotomia completa entre estas duas formas, e é muito comum a escolha de funcionários do quadro permanente para funções de confiança. Isto se deve ao conhecimento da máquina pública e à qualidade dos corpos burocráticos, fenômeno que já é perceptível em algumas áreas do Governo Federal brasileiro. Tais setores contêm carreiras estratégicas sedimentadas, fato que é reforçado quando os formadores de opinião defendem a preservação de tais segmentos das trocas mais fisiológicas de cargos - um caso paradigmático é o da Diplomacia.

O essencial é ter critérios claros de competência

Tomando como base esta definição dos cargos de confiança, o caso brasileiro contém três problemas, que devem ser bem distinguidos. O primeiro é o excessivo número de cargos em comissão, num número muito alto para padrões internacionais, e atingindo diversas áreas que não deveriam ser objeto de nomeação para fins do cumprimento do programa de governo aprovado pelas urnas - como é o caso de órgãos descentralizados da União, onde níveis muitos baixos da hierarquia ainda são espaços de loteamento político. O segundo problema diz respeito à existência de um enorme leque de postos de confiança com livre provimento, ou seja, que não exigem qualificação prévia para ocupação. Mesmo em certas funções mais próximas do governante, é necessário ter critérios para o exercício do cargo. Entre estes, destacamos a formação profissional, a experiência de trabalho, em alguns casos a relação com uma carreira pública existente, além do estabelecimento de mecanismos de responsabilização perante o sistema político e a sociedade. A distribuição fisiológica dos cargos, ademais, é fortemente influenciada pela fragilidade ou mesmo inexistência de carreiras burocráticas em setores fundamentais do Estado brasileiro. Não se trata de defender o preenchimento de postos políticos apenas pela via burocrática, o que poderia atrapalhar a implementação do programa aprovado pelos eleitores, além de impedir a saudável participação de integrantes da sociedade, da universidade e do mercado em determinadas funções governamentais. Mas se políticas fundamentais simplesmente não tiverem quadros permanentes de qualidade, há maiores chances do clientelismo e, por tabela, do nepotismo, espalharem-se pela administração pública. Realizadas estas três mudanças, a questão do nepotismo torna-se menos importante. Afinal, alguém tem dúvida de que Ruth Cardoso, independentemente de ser mulher do então presidente, era uma das pessoas mais qualificadas para assumir a coordenação do Comunidade Solidária? Vários dos parentes indicados no Governo Lula também se encaixariam nesta situação. O fato é que se houver uma redução drástica dos cargos em comissão, uma maior necessidade de qualificações para prover postos estratégicos do Estado e reforço ou criação de determinadas carreiras, o deputado Severino Cavalcanti terá mais dificuldades para defender seus apaniguados, parentes ou não. Mas é mais fácil, junto à opinião pública, criar uma lei contra o nepotismo do que modificar os padrões não meritocráticos e nada transparentes que ainda, infelizmente, regem parte da administração pública.