Título: Mais pragmatismo e menos ideologia no setor elétrico
Autor: Adriano Pires e Rafael Schechtman
Fonte: Valor Econômico, 25/04/2005, Opinião, p. A16

A privatização do setor elétrico, parcialmente empreendida no governo FHC, é rotineiramente apresentada pelos órfãos do antigo modelo estatal como o motivo da crise que culminou no racionamento de 2001. Segundo eles, o racionamento é a evidência cabal do fracasso do modelo privado. Não reconhecem, contudo, por falta de conhecimento ou, o que é pior, por uma mistura de ideologia com certa dose de oportunismo, que a privatização emergiu do esgotamento do modelo de financiamento baseado em investimentos estatais. Uma evidência clara desse esgotamento é a acentuada queda dos investimentos setoriais nos anos que precederam as privatizações. Nas últimas duas décadas do século passado, os investimentos no setor elétrico, em percentual do PIB, caíram continuamente. Enquanto na década de 70 esses investimentos situaram-se, em média, em torno de 3% do PIB, reduziram-se para 2,7% nos anos 80 e despencaram para 1,2% na década de 90. Sob estas circunstâncias, a expansão da geração foi reduzida drasticamente ao longo das últimas duas décadas. Enquanto, na década de 80 a capacidade de geração cresceu cerca de 5% a.a., na década seguinte o crescimento ficou abaixo de 3% ao ano. Esta mudança na dinâmica dos investimentos não se deu por decisão do governo, como declaram os críticos, mas sim pela inexistência de recursos. Simplesmente, esgotou-se o modelo de financiamento baseado em empréstimos efetuados com o aval do Tesouro junto a organismos multilaterais, como o Banco Mundial. Acabara a fartura de capitais baratos que ingressavam nos países em desenvolvimento, engordando, cada vez mais, as suas dívidas. Estes organismos passaram a exigir garantias reais atreladas aos empreendimentos, como no caso de empréstimos através de Project Finance, sendo insuficiente o aval dos governos. Foi esta a verdadeira razão que estimulou o desenho de um modelo privado para o setor elétrico brasileiro, em que a transmissão ficaria inicialmente sob a propriedade dos governos federal e estaduais e à iniciativa privada caberia os investimentos necessários à expansão da geração e da distribuição de energia elétrica. O modelo também previa a introdução gradual da competição no segmento de comercialização de energia elétrica, até que todos os consumidores pudessem escolher seus fornecedores de serviços de eletricidade, tal como é hoje no Reino Unido e em outros países. Criou-se a Aneel, para zelar pela qualidade dos serviços e, por ocasião das revisões contratuais, para aplicar redutores tarifários, definidos em audiências públicas, para que os consumidores se beneficiassem dos ganhos de produtividade obtidos pelos esforços das distribuidoras. No entanto, impasses políticos, bem como a indefinição de aspectos regulatórios importantes, tais como a regulamentação do mercado de gás natural - insumo básico para as novas termelétricas -, deixaram o modelo inacabado e impediram ingresso de novos investimentos com a velocidade necessária para acompanhar o crescimento de demanda decorrente dos efeitos do Plano Real. Aliás, é importante a ressalva, caso a retomada do crescimento econômico ocorresse durante a década de 80, certamente o racionamento aconteceria em pleno modelo estatal.

Privatização não foi uma opção política, mas uma resposta à redução da capacidade de investimento estatal

Apenas 20% do segmento de geração - justamente o que mais requeria investimentos - foram privatizados quando ocorreu o racionamento. Isto e um desempenho da Aneel abaixo do esperado pelos agentes frearam o ímpeto dos investidores privados que, mesmo assim, foram os que mais investiram. A transferência do programa de privatização do BNDES para o Ministério de Minas e Energia e a maxidesvalorização no início de 99 acabou, na prática, interrompendo as privatizações, criando um modelo híbrido e afugentando os investidores privados, que passaram a temer uma competição não-isonômica com as empresas estatais. Apesar dos prejuízos causados à população e à economia, o racionamento trouxe muitas lições sobre os pontos fracos do modelo, que foram aprendidas pelo Comitê de Revitalização do Setor Elétrico ao longo de 2001 e 2002. Infelizmente, o governo Lula ignorou este aprendizado ao lançar um modelo totalmente novo a partir do zero, cujo principal ingrediente é o mistério. Por exemplo, somente alguns iluminados do governo sabem qual é a demanda projetada pelas distribuidoras. Dos resultados dos dois leilões realizados, infere-se que, dos contratos que se iniciam em 2006 e 2008, faltam 710 e 1325 MW médios para atender a demanda até 2013 e 2014, respectivamente. Para os contratos que se iniciam em 2009 e terminam em 2016, sabe-se que faltam 100% da energia requerida pelas distribuidoras neste leilão. Não se sabe, porém, quando esta falta irá ocorrer. Aliás, esta é uma diferença marcante entre as gestões do setor elétrico pelo governo passado e o atual. Enquanto na gestão passada o público já estava consciente da iminência do racionamento, no atual a tutela do governo permite que durmamos a noite sem sobressaltos até que a luz se apague. A miopia do atual governo e de alguns acadêmicos ao ligar a crise do setor elétrico, exclusivamente, às privatizações, dando a elas uma conotação ideológica - ao invés de atribuí-la a falhas de gestão, por parte do governo anterior, do modelo privado - traz o risco de uma reprodução de erros cometidos no passado. Não é a troca de modelo que resolverá os problemas do setor elétrico, em particular por um modelo que se caracteriza pelo forte intervencionismo e pela vontade política de submeter as forças de mercado aos objetivos conjunturais do governo. E sim pela adoção de uma política mais pragmática e menos ideológica no tratamento dos investidores privados. Nesse sentido, cabe o alerta de que as PPPs (Parcerias Público-Privadas), vistas pelo governo como um remédio para todos os males, se aplica pouco ao setor elétrico. Para entrar no setor, o investidor privado exige um ambiente regulatório transparente e estável, muitas vezes difícil de construir em situações de parcerias.