Título: Medicamentos genéricos e a indústria nacional
Autor: Por Jean-Pierre Férézou e Roberto Nicolsky
Fonte: Valor Econômico, 07/10/2004, Opinião, p. A-11

Após um início difícil, as vendas de medicamentos genéricos no país, com preços em média 40% abaixo dos medicamentos de marca, têm progredido sistematicamente, atingindo, no primeiro semestre de 2004, US$ 203,3 milhões e 58,2 milhões unidades. Isso representa alta de 56 % em faturamento e 36% em volume sobre o mesmo período do ano anterior, segundo o IMS-Health, instituição internacional de acompanhamento do mercado de medicamentos. Esse aumento ficou bem além dos índices exibidos pelo mercado farmacêutico que, no primeiro semestre de 2004, cresceu 30,4% em valor e 11,9% em volume, em comparação a igual período de 2003, segundo a Febrafarma. Em quatro anos, o Brasil içou-se ao nível de países como a França ou a Espanha em termos de penetração dos medicamentos genéricos. A Associação Pró-Genéricos prevê crescimento de 30% ao ano até 2007, quando o segmento deverá representar 30% do mercado. Esses bons resultados e perspectivas contrastam com os do setor farmacêutico como um todo. Há seis anos, a venda de medicamentos vem diminuindo no Brasil, fazendo o Brasil passar, no ranking mundial, do 7º lugar, em 1997 (US$ 8,7 bilhões), para o 11º lugar em 2003 (US$ 5,6 bilhões), atrás do México. Essa queda da produção corresponde a um processo de desindustrialização (40% da capacidade de produção está ociosa) que já se reflete em desequilíbrio na balança comercial, tanto das especialidades farmacêuticas (produtos acabados), com um déficit de US$ 1,23 bilhão em 2003 (dados da Secex/MDIC), quanto das matérias-primas (fármacos, ou princípios ativos) com um déficit de US$ 0,72 bilhão. A produção nacional de fármacos está estimada em apenas US$ 0,3 bilhão. Além disso, é preocupante que no primeiro semestre de 2004 tenha havido forte aumento de 15,7% nas importações, que ultrapassaram US$ 1 bilhão em apenas meio ano. Isso poderá contribuir para maior deterioração da balança comercial do setor. Contrastando com o setor farmacêutico, onde mais de 70% do mercado está em mãos das empresas transnacionais, a maior parte dos genéricos é produzida por empresas nacionais. Mas essas empresas, na maioria dos casos, importam a matéria-prima ou mesmo o medicamento acabado, contribuindo assim para o aumento contínuo do déficit da balança comercial do setor. É imperativo alterar essa lógica de "venda" e transformá-la em lógica de "desenvolvimento" para o país, fabricando os produtos no Brasil - desde as matérias-primas até os medicamentos acabados - e substituindo as importações. Isso reduziria a dependência do exterior e fortaleceria a base de desenvolvimento tecnológico do setor farmacêutico nacional: qualquer progresso ou melhoria, por mínima que seja, no processo de síntese industrial de um fármaco ou de fabricação de um medicamento é uma inovação que precisa ser apoiada, pois contribui para aumentar a competitividade nacional.

É preciso aproveitar a capacidade instalada, hoje ociosa, para ganhar novas fatias do mercado global de genéricos

Outro fato relevante para a competitividade globalizada é a exportação de genéricos. No Brasil, graças à recente lei de patentes (1996), a fabricação de cópias genéricas de numerosos medicamentos de marca, ainda sob proteção de patentes em outros países, está legalizada. Assim, 86% das drogas disponíveis no mercado nacional podem hoje ter sua versão genérica. Em nível mundial, porém, as oportunidades são impressionantes. Considerando somente os medicamentos que têm faturado individualmente mais de US$ 1 bilhão em 2002 , com patentes que deverão expirar entre 2005 e 2012, encontram-se especialidades que representam, por si só, um mercado de quase US$ 60 bilhões. O interessante é que o Brasil já comercializa legalmente mais da metade desses medicamentos, além de um ou vários equivalentes genéricos. Ou seja, possui experiência com tais drogas em padrão de qualidade internacional. Portanto, as empresas nacionais deveriam ser apoiadas para aproveitar essa vantagem e produzir esses princípios ativos, consolidando a sua posição nacional e colocando produtos no mercado mundial, fatores decisivos para aumentar a competitividade. É isso o que tem feito a Índia, com pleno sucesso. Devemos nos valer da arrancada dos genéricos para a implantação de uma política decidida e ousada visando diminuir a dependência das importações, favorecendo a emergência de uma cadeia completa de produção de medicamentos a partir dos insumos, precursores e intermediários de síntese, respeitando padrões de qualidade internacionais. É preciso aproveitar a capacidade de produção instalada, hoje ociosa, para, finalmente, conquistar fatias crescentes do mercado global de genéricos, por meio de incentivos à produção e à exportação. Trata-se de oportunidade estratégica única para retomar a iniciativa nacional no setor de medicamentos, fortalecê-lo e dotá-lo de condições mais adequadas para alavancar o desenvolvimento de inovações tecnológicas nas empresas. Esse passo representa condição indispensável para que, no futuro, o setor produtivo esteja capacitado para tarefas mais avançadas, como o desenvolvimento de novos medicamentos baseados em princípios ativos descobertos no país, tanto fármacos planejados de maneira racional, quanto procedentes da nossa biodiversidade. Para realizar esse projeto ousado de produção nacional de fármacos e medicamentos, é preciso não só prover incentivos e apoio ao desenvolvimento tecnológico, mas também adotar mecanismos tarifários e não-tarifários para assegurar isonomia com os concorrentes internacionais, sobretudo asiáticos: exigências de qualidade para a importação de matéria-prima, adequação das empresas fornecedoras aos padrões internacionais de boas práticas empresariais e o uso do poder de compra do Estado. A política industrial, tecnológica e de comércio exterior do governo federal lançou as bases para esse redirecionamento, mas é preciso agora que as coisas aconteçam de maneira coordenada e efetiva.