Título: Brasil negocia acordos externos
Autor: Cristine Prestes
Fonte: Valor Econômico, 25/04/2005, Legislação & Tributos, p. E1

Desde o início do governo Lula, em 2003, o Brasil assinou dez acordos de cooperação internacional com países ou grupos de nações para permitir que decisões judiciais de fora possam ser cumpridas em território nacional. Outros 25 documentos já estão em fase de negociação. A ampliação do número de acordos já surte efeitos como uma maior facilidade no cumprimento de sentenças e pedidos de diligências. Mas são duas alterações na legislação brasileira que podem garantir uma revolução na forma como o país trata as solicitações de outros. A primeira delas é uma proposta de lei que unifica os procedimentos de cooperação judiciária, ainda em fase de estudos no Ministério da Justiça. A segunda é a transferência do julgamento dos processos sobre o tema do Supremo Tribunal Federal (STF) para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), promovida pela Emenda Constitucional nº 45, de dezembro de 2004, que estabeleceu a reforma do Judiciário. A cooperação jurídica internacional, tanto em matéria penal quanto em matéria civil, faz com que Estados diferentes interajam a ponto de aceitarem medidas judiciais tomadas em outros países quando uma das partes envolvidas está localizada em outro território. Ela permite, por exemplo, que o réu de uma ação judicial que tramita em um país possa ser citado na nação onde se encontra por carta rogatória. Ou que uma sentença proferida no exterior possa ter validade em território nacional mediante sua homologação. Embora o Brasil tenha regras para a homologação de sentenças estrangeiras e para o cumprimento de cartas rogatórias, sempre houve dificuldade na validação dos pedidos vindos de fora. Isso porque o STF, que até 2004 julgava as solicitações, tem uma jurisprudência rígida em relação a eles. A transferência das ações do Supremo para o STJ pode, segundo especialistas, "arejar" o julgamento dessas causas. Isso porque, embora o STJ deva, inicialmente, seguir o entendimento já consolidado do Supremo, poderá, aos poucos, criar sua própria jurisprudência sobre o assunto. "O STJ tem a oportunidade de modernizar a jurisprudência que se construiu em cima de questões cíveis", diz a procuradora do Estado do Rio de Janeiro Nádia de Araújo, professora e doutora em direito internacional privado e especialista em cooperação internacional. "O STJ, historicamente, é um tribunal mais ágil e mais moderno, pois foi criado depois da Constituição de 1988", afirma Lauro Gama Jr., advogado e procurador do Estado do Rio e também doutor em direito internacional privado. Segundo Nádia de Araújo, o STF se tornou a corte responsável pelo julgamento de solicitações internacionais na década de 30, quando 90% dos pedidos feitos eram para a homologação de sentenças de divórcio, instituto que surgiu no país somente em 1977. Assim, o tribunal superior acabava negando esses pedidos com a alegação de que atentavam contra o sistema do país. Caso semelhante ocorria com as sentenças de cobrança de dívidas contraídas em jogo - proibido no Brasil. "Quando alguém jogava lá fora e ficava devendo, o Supremo negava a carta rogatória porque no Brasil não havia jogo", diz Nádia. Na década de 90, quando as solicitações de outros países começaram a atingir a área comercial e a penal, a situação ficou mais complicada. No caso de matéria penal a situação se agrava, porque o crescimento de crimes transnacionais como a lavagem de dinheiro culminou na necessidade de medidas judiciais em diversos países, como quebras de sigilo bancário e telefônico, diligências e intimações. O STF, no entanto, não aceita cartas rogatórias com pedidos de execução, já que não são derivados de sentenças já transitadas em julgado no país de origem. De acordo com Lauro Gama Jr., a jurisprudência do STF já está sedimentada no sentido contrário à concessão de liminar ou tutela antecipada em relação a solicitações internacionais, a não ser que haja acordo internacional assinado pelo Brasil e pelo país de origem do pedido que estabeleça a cooperação. "Hoje, internamente, toda vez que há risco de perecimento de um direito com a demora na ação, pede-se a tutela em juízo, que pode ser concedida pelo juiz até que haja o julgamento definitivo do caso", diz. Mas o STF, afirma, entende que a sentença estrangeira não existe no mundo jurídico antes de ser homologada e, por isso, não reconhece a possibilidade de tutela provisória antes da homologação. Um caso ocorrido recentemente ilustra a diferença de tratamento dos casos nos dois tribunais superiores. O Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região recebeu e acatou um pedido para que autoridades suíças realizassem no Brasil atos investigatórios para a instrução de uma ação penal por crime de lavagem de dinheiro. O acusado por suposto envolvimento no caso Propinoduto - que apura desvio de verbas por fiscais estaduais do Rio de Janeiro - é um brasileiro que teria remetido dinheiro proveniente do crime para a Suíça. Na tentativa de recuperar os recursos desviados, o Brasil pediu ao país que bloqueasse e devolvesse o dinheiro. A Suíça, para atender o pedido, solicitou a realização dos atos investigatórios. Na véspera da audiência determinada pelo TRF, o acusado recorreu da decisão ao STJ, que atendeu o pedido por entender que a competência para a decisão deveria ter sido do tribunal superior. Mas um novo recurso ao pleno do STJ acatou o pedido de realização da audiência. O acusado recorreu ao Supremo, que suspendeu a audiência. Conforme Nádia de Araújo, sempre haverá a possibilidade de alegação de constitucionalidade para que os casos sejam remetidos ao STF, mesmo com a nova competência do STJ. No entanto, a maior parte dos casos terá a decisão final tomada no próprio tribunal. A Emenda Constitucional nº 45 entrou em vigor em 1º de janeiro deste ano e, um mês depois, o Supremo enviou todas as solicitações internacionais ao STJ. Já há, segundo pesquisa realizada por Nádia de Araújo, 900 cartas rogatórias e 600 sentenças judiciais para homologação no tribunal superior. Além da transferência de competência promovida pela emenda constitucional, o Ministério da Justiça estuda a criação de uma lei que estabeleça regras únicas para a cooperação internacional e uniformize os procedimentos. O objetivo é facilitar os pedidos de cooperação feitos pelo Brasil e mostra que o país está disposto a colaborar. De acordo com informações do ministério, com a existência de uma lei sobre o assunto a necessidade de acordos bilaterais de cooperação ficará muito menor. A minuta do projeto de lei está em análise na Secretaria Nacional de Justiça e depois segue para a Secretaria de Assuntos Legislativos, ambas do ministério. Depois de pronta, será levada à consulta pública.