Título: Catadores vão gerenciar indústria de reciclagem
Autor: Silvia Czapski
Fonte: Valor Econômico, 25/04/2005, EMPRESA & COMUNIDADE, p. F6

Uma parceria entre nove organizações de catadores de rua, alicerçada em uma gama de apoiadores, está viabilizando uma experiência pioneira em Belo Horizonte (MG). Trata-se da instalação da primeira indústria brasileira de reciclagem de plásticos gerenciada por uma rede econômica solidária, composta por estas organizações, que abrange sete municípios da região metropolitana, além de Pará de Minas. Instalada num terreno de 8 mil metros quadrados na capital mineira, cedido em comodato pela prefeitura, a nova indústria comunitária nasce de um estudo de viabilidade econômica patrocinado pela Fundação Interamericana. A implantação, bem como o capital de giro inicial, vêm de doações da Fundação Banco do Brasil e Brasil Prev (R$ 1,2 mi-lhão) e do Ministério do Trabalho (R$ 500 mil). "A indústria terá de constituir um fundo próprio para prosseguir", prevê Marislene Nogueira, que trabalha junto às organizações de catadores através da Pastoral de Rua da Arquidiocese de Belo Horizonte. Na primeira fase da unidade, diz Marislene, cerca de 200 toneladas por mês de plástico serão transformadas em pellets (grânulos), usados pelo setor de transformação desse material. Além de gerar cerca de 40 empregos diretos, a renda média de cerca de 550 catadores deve saltar dos atuais R$ 300 a R$ 350 para R$ 450 mensais. Citando o estudo de viabilidade, ela adianta que, em quatro anos, a intenção não é só aumentar o volume processado pelo empreendimento, mas também iniciar a fabricação de produtos finais, o que agregará ainda mais valor de venda. Se já parece um avanço criar um negócio com retorno econômico para a inclusão social de um grupo pré-determinado, Marislene avisa que o projeto irá mais longe. "Não queremos estabelecer um grupo de catadores com alta renda, mantendo os demais na rua". A fórmula está no destino das sobras financeiras apuradas no balanço anual. Metade será reaplicada no próprio negócio e 25% redistribuídos entre os participantes das organizações envolvidas. O restante seguirá para novos projetos de inclusão social na comunidade local. Catadores, lembra Marislene, pertencem ao cenário urbano brasileiro há décadas, sempre à margem da economia formal e sem noção do seu papel para a conservação ambiental. Ainda hoje, em todo país, muitos permanecem "amarrados" a depósitos, que freqüentemente emprestam os carrinhos, mas pagam valores irrisórios pelos materiais coletados. A meta é reverter esse quadro. Das organizações reunidas na nova indústria de reciclagem, a maior é a Associação dos Catadores de Material Reaproveitável (Asmare) de BH. Fundada em 1990, através da Pastoral de Rua e da Cáritas Brasileira Regional (ligada à CNBB), reúne 380 catadores, 55% mulheres, que coletam 450 toneladas mensais de recicláveis. Metade vem do trabalho porta-a-porta, que envolve cerca de 250 associados e atende em torno de 30 mil pessoas. O resto vem da coleta mecanizada junto a mais de 400 parceiros. São escolas, condomínios e empresas, entre as quais ABB, C&A e Jamef Transportes, que promovem a coleta seletiva interna para doar os recicláveis. Com alguns, há uma troca de serviços: a Asmare cede recipientes e coloca à disposição um associado para o serviço de coleta. A prefeitura no transporte mecanizado dos materiais. As atividades, diz Marislene, são acompanhadas pelo processo de resgate da auto-estima e cidadania destas pessoas, historicamente excluídas. Parte disso, é a promoção de cursos de associativismo, qualificação profissional e obrigatoriedade dos filhos frequentarem escola. Antes mesmo da nova indústria, ela conta que a Asmare já transformava pequena parte dos materiais coletados. Em oficinas de reciclagem, 27 ex-moradores de rua produzem artefatos exclusivos como blocos e agendas encadernados com papel artesanal, ou objetos de decoração com embalagem pet, metais, restos de madeira. Em São Paulo, na Zona Oeste está para ser inaugurada uma indústria de telhas feitas com papelão recolhido pelo Projeto Vira-Lata, e impermeabilizadas com betume asfáltico, subproduto da indústria do petróleo. Construída com R$ 210 mil doados pela Petrobras, o novo empreendimento deve gerar 40 postos de trabalho, diz o sociólogo Wilson Santos Pereira, presidente da Associação Vira-Lata. Nascido em 1998, da mobilização de freqüentadores da Igreja Divino Mestre, o Vira-Lata congrega hoje cerca de 50 ex-desempregados, também mulheres na maioria, que fazem a triagem, prensagem e comercialização de materiais numa central de recepção de materiais recicláveis. O local é cedido pela prefeitura. Com coleta motorizada, todos os materiais vêm de doações de empresas, condomínios, escolas e parques das Zonas Oeste e Sul. "Não aceitamos que nossos associados usem tração manual (carrinhos) e não compramos de catadores avulsos", revela seu presidente. Transparência é um dos diferenciais da entidade, diz ele, que mensalmente divulga uma planilha eletrônica, com os resultados quantitativos e financeiros das atividades. Papel é o material mais coletado pela associação. Mas sua comercialização tem sido difícil. A construção da nova fábrica de telhas resolve este problema, afirma Pereira, lembrando que a parceria com a Petrobras data de 2003. A empresa doou dois veículos para a coleta, patrocinou melhorias de infra-estrutura (construção de galpão e novas bancadas para triagem), custeou uniformes e equipamentos de segurança, além de cursos de capacitação. "Com a fábrica, os investimentos devem chegar a R$ 600 mil", avalia. Antes mesmo da indústria, os novos equipamentos e instalações aumentaram a produtividade, fazendo com que os ganhos dos associados, que beiravam R$ 350 mensais ultrapassassem os R$ 400. A rotatividade do pessoal diminuiu. "Quem participa, tem de manter suas crianças na escola e cumprir normas, como horário de trabalho. Nem sempre isto é fácil, para quem vem das ruas", afirma.