Título: A ética católica e a revolução feminina
Autor: Marcelo Côrtes Neri
Fonte: Valor Econômico, 26/04/2005, Opinião, p. A15

A análise da evolução das variáveis sócio-econômicas e demográficas brasileiras revela que poucas mudaram quanto à escolha religiosa. A comparação de 1940 a 2000 indica crescente troca do catolicismo pelo ateísmo e por religiões alternativas em todas faixas as etárias. A participação dos agnósticos entre quem tinha 20 a 29 anos no último censo é de 9%, contra 3,8% de quem tinha mais de 60 anos. À medida que caminhamos da idade adulta em direção ao final do ciclo de vida, a predisposição religiosa poderia ganhar relevo junto de questões vitais - como para onde vamos e de onde viemos. Mas tão interessante quanto comparar pessoas em idades diferentes num mesmo ano, ou pessoas com a mesma idade em anos diferentes, é acompanhar a trajetória religiosa de cada geração desde seus primórdios. Isto equivale a unir os pontos na diagonal, ao invés de visualizarmos comparações na horizontal ou na vertical. Senão vejamos: a taxa dos sem-religião dos idosos de 2000 era de 3,8%, contra 1,71% em 1980, quando a geração tinha entre 40 a 49 anos, e 0,18% em 1940, quando a mesma tinha entre 0 e 9 anos de idade. Ou seja, mesmo quando consideramos uma geração mais velha - e portanto supostamente mais conservadora - a taxa de ateísmo está em geral aumentando, e não diminuindo ao longo do ciclo de vida.

Replicando o exercício para a taxa de católicos daqueles nos anos 30, a mesma cai, nesta geração, de 95,63% em 1940 para 87,6% em 1980, chegando a 77,3% em 2000. Ou seja, a taxa de católicos aumentou com a idade das pessoas e não diminuiu conforme o perfil etário sugeria. Mal comparando, na análise estática extraímos retratos de diferentes idades e/ou em diferentes instantes do tempo. Na análise geracional, combinamos estes mesmos retratos de forma a traçar um filme da vida de cada geração. As curvas das taxas de católicos de gerações mais novas são dominadas pelas curvas de gerações mais antigas, e o reverso se dá para os sem-religião. Isto capta as mudanças inequívocas entre gerações. Além disso, à medida em que cada geração foi envelhecendo, tendeu a abandonar o catolicismo e as religiões de maneira geral. Talvez a maior rival da transformação religiosa supracitada, em magnitude, seja o incremento da participação da mulher no mercado de trabalho. Aqui investigamos possível associação entre mudança de religião e ascensão feminina. As mulheres são hoje, como sempre foram desde que o Brasil é Brasil, mais religiosas que os homens: 5,7% delas não possuem crença, contra 9% deles. Em 1940, essas taxas eram 0,25% e 0,17% respectivamente. Ou seja, os homens migraram mais para não-religiosidade no período, e as mulheres para religiões alternativas. Hoje, entre aqueles que professam algum credo, 78% das mulheres são católicas, contra 82% dos homens. Em 1940, a ordenação destas taxas era invertida, correspondendo a 96% e 95%, respectivamente. Por que as mulheres optam hoje mais intensamente que os homens por crenças alternativas ao catolicismo dominante? Tal como em "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", que recém-celebrou um século, poderíamos observar afinidades eletivas entre as inovações nas escolhas e estruturas religiosas, de um lado, e as mudanças sociais e econômicas das mulheres de outro. A tese weberiana original é que a ética/culpa católica inibiria a acumulação de capital e a divisão do trabalho, motores do desenvolvimento capitalista. Similarmente, a ética católica estaria sendo trocada por outras mais em linha com a emancipação feminina em curso. Num grupo de cinqüenta religiões consideradas, a predominância feminina relativa se dá em 43 delas, sendo as exceções os próprios segmentos do catolicismo, o judaísmo, o hinduísmo e o islamismo, todas de corte patriarcal. Questões centrais para as mulheres de hoje, como contra-concepção, divórcio e conquista profissional, são tabus para a Igreja Católica. A independência feminina conquistada nas últimas décadas foi acompanhada de revolução de costumes. Enquanto os homens abandonaram as crenças, as mulheres trocaram de crença, preservando mais que eles a religiosidade. O catolicismo é patriarcal, já a religiosidade é mais feminina que masculina, passada da mãe as filhas e aos filhos.