Título: O uso indevido do acordo antidumping
Autor: Antonio Garbelini Junior
Fonte: Valor Econômico, 26/04/2005, Legislação & Tributos, p. E2

A prática de dumping é descrita pelo acordo antidumping da Organização Mundial do Comércio (OMC) como sendo "a oferta de um produto no comércio de outro país a preço inferior a seu valor normal". Entretanto, nem o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), em seu artigo VI, muito menos o acordo antidumping proíbem o dumping, mas somente condenam tal prática quando ela causa - ou ameaça causar - graves prejuízos a uma indústria estabelecida no país importador ou à implantação de tal indústria. Vê-se, portanto, que a investigação de práticas antidumping é um direito que compete ao país importador, tendo por objetivo resguardar seus interesses comerciais. Entretanto, parece estar havendo uma tendência, em alguns países, de incentivar a solicitação de investigações antidumping, talvez como forma de inibir as importações, já que o simples fato de uma investigação antidumping ser iniciada implica na diminuição das exportações do produto em questão para o país importador. Prova disso é a informação prestada pela Câmara de Comércio Exterior (Camex) no sentido de que a simples abertura da investigação antidumping pelos Estados Unidos, tendo por objeto a exportação de camarão brasileiro para aquele país (que culminou com a aplicação de direitos antidumping contra empresas brasileiras) provocou a diminuição de vendas desse produto de US$ 75 milhões para US$ 35 milhões ao ano. De acordo com um estudo realizado por Aluísio de Lima Campos e Adriana Vito, publicado no número 76 da Revista Brasileira de Comércio Exterior, foi constatado que o mero requerimento de uma investigação antidumping já seria capaz de reduzir as importações do produto averiguado, pelo temor do importador em arcar, ao fim da investigação, com o pagamento de direitos antidumping. Assim, iniciada a investigação sobre um produto, a tendência é que o importador venha a substituir o exportador por outro de país que não esteja sendo investigado. No âmbito da OMC, a questão da utilização de mecanismos que incentivem a abertura de apuração antidumping, fora do escopo do GATT e do acordo antidumping, começa a ser objeto de debate. No ano de 2003, o órgão de solução de controvérsias da OMC, em um procedimento requerido por vários países - entre eles o Brasil -, condenou os Estados Unidos a procederem à alteração de uma medida legislativa, denominada Emenda Byrd, por entender que a mesma violava disposições do acordo antidumping, o que não ocorreu até o momento, estando aquele país, desde o ano passado, sujeito à imposição de medidas compensatórias por partes dos países reclamantes, também conhecidas por retaliações. A mencionada Emenda Byrd autorizava a repartição dos valores pagos a título de direitos antidumping entre as empresas americanas solicitantes da investigação, possuindo tal mecanismo uma nítida finalidade de incentivar a abertura de investigações antidumping, já que a empresa requerente, além de se beneficiar com a redução das importações por força da abertura de uma investigação, ainda contaria com recursos extraídos de seus concorrentes para aplicar livremente em promoções, marketing ou mesmo em descontos, ampliando ainda mais sua vantagem competitiva.

Iniciada a investigação sobre um produto, a tendência é que o importador venha a substituir o exportador

Assim, é razoável supor que alguns países, como os Estados Unidos, possam estar abusando do direito previsto nos acordos da OMC de reprimirem a prática do dumping lesivo aos seus interesses comerciais, o que pode implicar na transformação gradativa de um instrumento originariamente concebido para efetivar a repressão de práticas desleais de comércio em verdadeira e indevida barreira não tarifária. Resta saber, pois, qual será o posicionamento da OMC se tal tendência vier a se manter ou mesmo se ampliar. No âmbito de algumas jurisdições, como a brasileira, a figura do abuso de direito é conhecida e reprimida. Entretanto, na OMC a questão é mais delicada, já que existe a presunção de boa-fé nos atos praticados por seus membros. Além do mais, estando presentes as condições mínimas para a abertura de uma investigação antidumping, parece não ser cabível a alegação de estar ocorrendo uma violação direta aos acordos da OMC, que possa ser imputada ao país investigante, mesmo na hipótese da mesma ser encerrada sem a imposição de direitos antidumping. O que poderia ser eventualmente alegado seria a ocorrência da hipótese de não-violação, prevista no artigo XXIII, 1.b do GATT, pelo fato de concessões feitas nas rodadas de negociação estarem sendo anuladas pelo uso abusivo das ferramentas antidumping, alegação também difícil de ser acatada pelo órgão de solução de controvérsias, tendo em vista os precedentes já existentes na OMC. Assim, a questão se apresenta mais política do que jurídica, a ensejar que os membros da OMC que não usam indevidamente o acordo antidumping como barreira não-tarifária pressionem aqueles que o utilizam com finalidades impróprias, para resguardar-se o espírito que embasa a OMC, que é o de fomentar o comércio livre de barreiras em prol do bem estar mundial.