Título: José Dirceu na política externa
Autor: Cristiano Romero
Fonte: Valor Econômico, 27/04/2005, Brasil, p. A2

A recente proeminência do ministro da Casa Civil, José Dirceu, em assuntos da política externa é uma interessante novidade do governo Lula. Ela quebra um velho monopólio do Itamaraty na condução dessa política. Sendo Dirceu o ministro mais importante do governo, a estratégia dá um peso específico a temas delicados nos quais o Brasil tem se envolvido. A participação do ministro, até agora bem-sucedida, tem resultado num papel corretor de certas posturas do Itamaraty. Em julho de 2002, quando Lula já despontava como grande favorito na corrida presidencial, José Dirceu, naquela ocasião presidente do PT e principal arquiteto da campanha, foi o primeiro petista a avistar-se com autoridades do governo Bush. Foi recebido por dois assessores do presidente americano: um econômico e um diplomático. O assessor diplomático - John Maisto - era o braço-direito da então conselheira de segurança nacional, Condoleezza Rice, para assuntos relacionados à América Latina. O econômico - Lawrence Lindsey - assessorava o presidente George W. Bush desde os tempos em que ele governava o Estado americano do Texas. A ambos, Dirceu levou mensagem clara: o governo Lula não romperia contratos, não faria aventuras na área econômica, não faria contraponto aos interesses dos Estados Unidos na América do Sul. Dirceu causou boa impressão, como já havia sido bem recebido por investidores e analistas de Wall Street antes de visitar Washington. Sua missão deu certo. Lula foi eleito no fim de outubro de 2002. Em dezembro, antes mesmo de tomar posse, foi recebido por Bush na Casa Branca, num sinal de deferência - presidentes americanos não costumam receber chefes de Estado que ainda não tomaram posse. Com a reeleição de Bush, Condoleezza Rice foi promovida a secretária de Estado, cargo equivalente ao de chanceler no Brasil. Preocupado com o viés crescentemente anti-americano do Itamaraty, o presidente Lula deu a Dirceu, e não ao ministro Celso Amorim, a missão de ter com Rice o primeiro contato direto de uma autoridade brasileira. Lula estava preocupado também com o comportamento, igualmente anti-americano, do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, de quem é próximo, e da repercussão disso na imagem do Brasil. No encontro com Rice, o ministro da Casa Civil teria reafirmado que Lula não é Chávez e que o governo brasileiro, apesar de cultivar um bom relacionamento com o venezuelano e de se propor, inclusive, a ser seu principal interlocutor nas Américas, não aprecia sua escalada anti-americana. Mais uma vez, Dirceu saiu-se bem. Coincidência ou não, depois de receber o ministro, Condoleezza Rice tem sido só elogios ao país, inclusive, em temas caros ao Brasil, vistos com desconfiança em Washington, como a política de enriquecimento de urânio. Chávez e sua retórica anti-americana incomodam o Palácio do Planalto, mas encontram entusiastas no Itamaraty. Não é segredo para ninguém o que pensa dos Estados Unidos o secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores, Samuel Pinheiro Guimarães. Seu anti-americanismo borbulha nos textos que escreve e distribui com freqüência a um seleto grupo de diplomatas. Daí, o papel de José Dirceu em reafirmar, nos contatos com autoridades americanas, as boas intenções do governo Lula.

Nos EUA, o que o ministro faz é comum

A iniciativa mais recente do ministro da Casa Civil foi uma viagem-relâmpago a Caracas, antes da chegada de Rice ao Brasil, para uma conversa com Chávez. Dirceu foi e voltou num pé só, a tempo de fazer um relato do encontro que teve com o presidente venezuelano, antes de Lula receber ontem a secretária de Estado. "O presidente Lula enxerga que há uma missão a ser cumprida pelo ministro Dirceu", conta um assessor direto do presidente. "Dirceu é um homem de poder. Está talhado para a função", comenta um embaixador experiente. Em outro episódio recente, o ministro da Casa Civil fez questão de corrigir o que parece ter nascido nas hostes do Itamaraty - a idéia de abdicação, pelo Brasil, das negociações para a criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Na semana passada, o presidente Lula afirmou que a Alca está fora "da pauta". O presidente fez a alegria da diplomacia que rejeita a Alca, embora não tenha desejado dizer exatamente isso. Coube a Dirceu, e não ao Itamaraty, esclarecer a posição do governo. "Não é que o assunto tenha saído da pauta. O que sempre dissemos é que a negociação não pode ser prejudicial aos interesses brasileiros. A posição do Brasil é clara: queremos ter as melhores relações com os Estados Unidos; (a declaração de Lula) não é uma posição contra a integração com os EUA", sustenta um colaborador do presidente. O que o ministro José Dirceu está fazendo na política externa é comum nos EUA. Lá, além do Departamento do Estado, lidam diretamente com assuntos diplomáticos o Conselho de Segurança Nacional e o USTR, a representação comercial, uma espécie de ministério do comércio exterior. O fato de as negociações comerciais ficarem a cargo do USTR tem a vantagem de evitar que esses assuntos, em que são comuns os conflitos, contagiem o relacionamento político dos EUA com outros países. A posição do Itamaraty sobre a Alca é oportunista. Como o governo Bush e o Congresso americano não têm facilitado o diálogo do livre comércio - agora mesmo, ameaçam sobretaxar as importações da China -, fica fácil dizer que não é possível avançar as negociações da Alca. Mas, imaginar que é possível abdicar do acesso ao maior mercado do mundo é um contra-senso. "A Alca é hoje um carro enguiçado no meio da rua", lamenta o ex-chanceler Luiz Felipe Lampreia. Um assessor do presidente Lula diz que não há conflito entre a ação de Dirceu e a do Itamaraty. Na verdade, o presidente não arbitraria o conflito porque, mesmo discordando de aspectos da política externa, ela é útil à sua política interna. Diante disso, o país continuará emitindo sinais dúbios ao exterior, tendo o ministro José Dirceu o papel de corrigir exageros e irracionalidades.