Título: Déficit social e metas para um desenvolvimento justo
Autor: Clemente Ganz Lúcio
Fonte: Valor Econômico, 27/04/2005, Opinião, p. A12

Dizer que o Brasil é um país desigual pode virar lugar-comum. Entretanto, não é nada confortável reconhecer desigualdades tão profundas, nem que essa situação é resultado de uma história feita por nós mesmos. Construir propostas concretas, ousadas e viáveis para transformar essa situação requer uma vontade política não muito disponível na sociedade brasileira. Fazer acontecer as transformações necessárias para perdermos o nosso troféu de campeões da desigualdade é quase uma utopia delirante. Os membros do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, órgão vinculado à Presidência da República, priorizaram o enfrentamento dessa questão, assim formulada coletivamente, como âmbito problemático a ser atacado: "extrema desigualdade social, inclusive de gênero e raça, com crescente concentração de renda e riqueza, parcela significativa da população vivendo na pobreza ou miséria, diminuição da mobilidade social". O quadro complexo e dramático da desigualdade pode ser sintetizado em três indicadores: 1) de acordo com o Índice de Gini -- indicador criado para medir a qualidade da distribuição de renda de uma sociedade --, somos campeões de desigualdade distributiva, título que nem mais de 10 anos de estabilidade econômica (1994 a 2005) conseguiram tirar do país; 2) somos desiguais e temos muitos pobres, apesar de sermos um país de renda média. Muitos, mas muitos mesmo, ganham muito pouco. Poucos, mas não tão poucos assim, ganham muito. E afinal, quantos são os pobres no Brasil? A definição de linha de pobreza é um recurso capaz de apoiar essa mensuração. Tomemos como exemplo a linha construída a partir de R$ 60,00 mensais per capita, como defendem alguns estudiosos do tema. Por mais estranho que possa parecer, é isso mesmo. Alguns consideram pobres aqueles que têm rendimento mensal abaixo de R$ 60,00. O resultado indica que 12% da população brasileira é considerada pobre. Com um pouco de bom senso e compaixão, a conclusão é óbvia: o valor não é suficiente nem mesmo para ser pobre. Se dobrássemos o valor da linha de pobreza para R$ 120,00, quantia ainda muito baixa para alguém viver dignamente, o contingente de pobres aumentaria para 31% da população brasileira. Com este dilema, que envolve valores tão insignificantes, não há saída técnica possível. A questão é eminentemente política; 3) a distribuição funcional da renda, que é a sua repartição entre trabalho, capital e administração pública, é muito ruim e vem piorando. O trabalho já representou 49% da renda nacional, em 1959. Em 1999, apropriava-se de 38,1% e, em 2003, de apenas 35,6%.

Enfrentar o problema da desigualdade e da pobreza exige políticas, projetos e ações de longa duração

A desigualdade é mãe da pobreza. A concentração de renda, riqueza e poder são seus avós. Para enfrentar o problema é preciso atuar na gênese. Na reunião do CDES, ocorrida em 10 de março, apresentamos ao presidente da República, por intermédio dos ministros, e aos demais Conselheiros, a seguinte proposta, construída com a colaboração de outros membros do Conselho: 1) o Brasil deve definir claramente qual é o tamanho da sua dívida social. Propõe-se a criação de um conceito/indicador de Déficit Social Brasileiro, instrumento destinado a iluminar todos os gestores públicos e privados na elaboração e gestão de políticas; 2) deve-se estabelecer como prioridade absoluta o combate à desigualdade e à pobreza; 3) como prioridade, entende-se que todos os projetos, políticas e ações devem contribuir para a diminuição da desigualdade e da pobreza; 4) o enfrentamento do problema da desigualdade e da pobreza exige políticas, projetos e ações de longa duração (5, 10, 20 anos). É necessário construir uma visão de longo prazo que indique claramente onde se quer chegar, quais são os recursos necessários (origem e forma de alocação) e responsabilidades das diferentes esferas do poder público (Executivo, Legislativo e Judiciário), dos entes federados (municípios, estados e União), do setor privado e do terceiro setor; 5) a natureza do problema e do desafio, os motivos que levam ao enfrentamento da desigualdade e da pobreza, os tipos de recursos necessários (econômicos, políticos, culturais, sociais, entre tantos outros), o tempo requerido e a continuidade (a ação com os recursos no tempo) exigem transformar essa prioridade em uma política de Estado, em um compromisso a ser perseguido pela nação, ano a ano, nas próximas décadas. Por isso, propõe-se que uma ação prioritária de curto prazo seja transformar o enfrentamento do problema em política de Estado; 6) transformar em política de Estado essa prioridade é uma construção social que exige percorrer e superar níveis distintos de complexidade. O primeiro nível é a construção de um entendimento coletivo do problema, ou seja, a plena consciência nacional do desafio a ser enfrentado, da sua gravidade e o desejo de superá-lo. Decidir e agir exigem um nível superior de complexidade, um acordo que indique metas a serem atingidas, recursos a serem alocados, as responsabilidades de todos e o compromisso de fazer, avaliar, corrigir e perseguir, com determinação, o objetivo. Talvez o país mude. Talvez gostemos de viver num país com bases justas, com diferenças, mas sem desigualdades. Talvez venhamos a reconhecer que fomos capazes de construir as bases para um novo contrato social. Nesse, caso, teremos atingido o terceiro nível de complexidade e, talvez, queiramos mantê-lo como modo de vida no Brasil. Essa construção exigirá escolher os eixos prioritários e básicos de enfrentamento do problema. Criar indicadores de monitoramento que permitam relacionar a situação presente (problema), o objetivo a atingir (metas) e os resultados alcançados com as políticas, projetos e ações. Monitorar, avaliar e corrigir visando sempre atingir as metas sociais; 7) há um critério/indicador estrutural dessa prioridade: a eqüidade. Teremos justificativas sem fim para não fazer nada disso, principalmente porque a distribuição de renda, riqueza e poder será muito diferente se materializarmos como política de Estado o combate à desigualdade e à pobreza. Mas sempre cabem a esperança e o dever de lutar para viabilizar essas mudanças.