Título: A necessária, mas lenta, não-ruptura
Autor: Armando Castelar Pinheiro
Fonte: Valor Econômico, 27/04/2005, Opinião, p. A13

Dom Pedro II costumava dizer que não havia nada mais conservador do que um liberal no poder, referindo-se aos partidos que dominavam a política de então. Se lesse o programa "Bases de um projeto para o Brasil", proposto pela ala majoritária do PT, o imperador diria que nada mudou, um século e meio depois. O documento é um retrato das políticas públicas nos dois últimos anos. Na economia, em especial, ele defende o equilíbrio fiscal como a base de qualquer projeto de desenvolvimento, e a Lei de Responsabilidade Fiscal como sua maior guardiã; advoga a neutralidade de incentivos entre exportações e vendas domésticas; e aponta a necessidade de atrair o investidor privado para a infra-estrutura. O documento vai além, reconhecendo a intolerância da sociedade a novos aumentos de impostos, a urgência de uma nova reforma da previdência social e a barreira ao desenvolvimento que representa a informalidade. Nem as propostas, nem o seu contraste com o ainda oficial programa do PT, "A ruptura necessária", são novidades. O próprio documento chama a atenção para a significância das mudanças de visão e o aprendizado que isso envolveu. Também não é novidade que a salutar convergência de visões que se observa no país foi fundamental para evitar a crise que se prenunciava em 2002, com o receio da ruptura de modelo, e para permitir o avanço das reformas. Fernão Bracher bem resumiu este ponto (FSP, 11/04/2005): "O conjunto da obra é muito bom. Em primeiro lugar, porque o governo não tem mais a oposição do PT". É difícil, portanto, exagerar a relevância desse aprendizado. Mas aprender não é tudo. O tempo que isso leva também é importante. O custo para o país de essa mudança só ter ocorrido em 2003 não foi desprezível, como observou Suely Caldas (ESP, 17/04/2005). Mais importante à frente, porém, é o tempo que será necessário para que esse aprendizado se estenda a outras quatro áreas críticas, em que não se observa igual avanço. A primeira é a política social, em que o documento evidencia uma falta de resultados e propostas. É revelador, por exemplo, que não se cite um único indicador de progresso nas áreas de educação e saúde, em contraste com os muitos mostrados para a economia. Nem há nessas áreas um nexo entre o que foi feito e o que se pretende fazer, mas apenas propostas que valem sempre: melhorar a qualidade da educação, combater a pobreza, etc. A ênfase recai inteiramente sobre as transferências compensatórias. Mas não basta transferir recursos sem associá-los a condicionalidades que estimulem as famílias pobres a acumular capital humano, e sem melhorar a oferta de educação e saúde. O documento também mostra que permanece o conflito entre focalizar e universalizar a política social, o que tem comprometido a sua eficácia. Cita-se a melhoria da qualidade do gasto público como objetivo, mas não se diz como se pretende alcançá-lo. O que observa, pelo contrário, são propostas descoordenadas de aumentos de gastos, sem clara seleção de prioridades. Em especial, defende-se um aumento do investimento, mas na prática se privilegiam os gastos correntes. Por isso, não surpreende que, a despeito da elevada carga tributária, a taxa de investimento da administração pública em 2003, de 1,7% do PIB, tenha sido a mais baixa desde que se começou a computar a série, em 1947.

Programa do PT defende política econômica do governo, mas evidencia a falta de propostas e resultados na área social

O documento também revela uma continuada ambigüidade em relação ao papel do Estado na economia, ora defendendo um Estado essencialmente regulador, ora o dirigismo estatal. Pode parecer que não há conflito entre os dois, mas na prática isso não funciona. Para se dar opções ao Estado dirigista se privilegia uma regulação que deixa as portas abertas às mudanças de regras. É o que fica evidente no projeto para as agências reguladoras, parado no Congresso há dois anos. Em relação à inserção internacional do Brasil, se observa no documento uma inconsistência entre o objetivo de expandir as exportações e a ênfase nas relações comerciais Sul-Sul. Tome-se o caso do Gabão, país que recebeu uma missão presidencial em 2004. Em 2005, as exportações para o Gabão subiram 98%. Pode ter sido resultado da visita, ainda que o crescimento de 155% das exportações de 2002 para 2003 indique que talvez não. Que seja, dobrar as exportações para o Gabão significa exportar cinco milhões de dólares a mais. Juntem-se 100 Gabões, suponha-se que para todos as exportações dobrarão, e se terá um impacto agregado de 0,5% sobre o total exportado. Em que pesem outros benefícios desse intercâmbio, não é por aí que as exportações brasileiras vão dar um salto. Para isso se terá de buscar o mercado dos países ricos e aceitar um maior grau de abertura da economia. Assim, ainda há muito a ser aprendido. E o tempo joga contra. O cenário externo, que tem sido muito benigno desde 2003, contribuindo para os bons resultados de 2004, tende a piorar, talvez significativamente, já a partir deste ano. Isso complicará a gestão da economia e diminuirá a transparência do debate político, dificultando a aprovação das reformas. O tempo também faz crescer a pressão para que a política econômica gere resultados que atualmente não estão ao seu alcance. Não é difícil entender por quê. Como no resto da América Latina, o eleitorado vê o desemprego como o maior problema do Brasil, com três em cada quatro brasileiros temendo perder o emprego nos 12 meses à frente. A preocupação é justificada: para que a taxa de desemprego caia significativamente, o emprego precisa aumentar pelo menos 2,5% ao ano, duas vezes tanto quanto em 1993-2003. Como a produtividade da mão de obra sobe cerca de 2% ao ano., isso exigiria que o PIB crescesse 4,5% ao ano. Pode parecer pouco, depois dos 5,2% de expansão em 2004, mas é quase o dobro dos 2,4% médios anuais da última década. E é mais do que permite a taxa de investimento, que em 2003/2004 ficou 1,7% do PIB abaixo do já reduzido patamar de 1995/2002. A lição que se tira daí é que não basta aprender, é preciso fazê-lo com rapidez, abrangência e convicção. A dúvida que fica é a colocada no documento do Campo Majoritário (página 4): "Até que ponto o PT está preparado para iniciar o debate sobre esses problemas"?