Título: Dívidas dos EUA conduzem à ruína
Autor: Martin Wolf
Fonte: Valor Econômico, 27/04/2005, Opinião, p. A13

No começo deste mês, o Senado dos EUA votou por 67 a 33 a favor de considerar um projeto de lei que poderá impor uma sobretaxa de 27,5% a todas as importações chinesas, se este país não reavaliar sua posição num prazo de seis meses. Rob Portman, candidato do presidente George W. Bush para o cargo de representante comercial dos EUA, prometeu uma "abordagem mais agressiva" com relação às práticas comerciais chinesas. O descaso benigno do déficit em conta corrente dos EUA está se transformando numa atenção maligna. O que está sendo proposto, porém, é equivocado, quando não perigoso. Num sistema comercial multilateral, os déficits e superávits bilaterais não têm importância. Este é um desafio global, que requer soluções globais. Apresentarei quatro propostas que condensam minhas análises anteriores, incluindo o artigo da semana passada ("Mais déficit para os emergentes", 20 de abril). Primeira proposta: as tendências atuais são insustentáveis e indesejáveis. Se as tendências nas importações e exportações dos últimos 15 anos se mantiverem inalteradas, o passivo líquido dos EUA poderá dar um salto, passando de praticamente um quarto do Produto Interno Bruto no fim de 2003, para 120% do PIB até 2014. Mesmo se o déficit em conta corrente se estabilizasse como uma fração do PIB, o índice ainda atingiria 80% do PIB. É difícil acreditar que o setor privado estrangeiro poderia deter voluntariamente tamanha quantidade de direitos, denominados em dólares, aos preços atuais dos ativos dos EUA. Também custa imaginar, porém, que o setor oficial estrangeiro poderia, ou deveria, oferecer recursos aos EUA em tamanha magnitude. Entre 2002 e 2004, inclusive, o financiamento direto do déficit em conta corrente dos EUA por parte do setor oficial estrangeiro somou US$ 718 bilhões. Entre dezembro de 2001 e dezembro de 2004, as reservas globais de divisas cresceram em US$ 1,68 trilhão, atingindo US$ 3,73 trilhões. O Goldman Sachs afirmou recentemente que as reservas bancárias em moeda estrangeira superavam o nível ideal em US$ 1,4 trilhão (Global Economics Weekly, 13/04/2005). Os cálculos precisos são questionáveis. O argumento, no entanto, não é. A China, por exemplo, acumulou US$ 600 bilhões até o fim do ano passado. Uma valorização do yuan em 30% infligiria uma perda de 10% do PIB. Conforme argumentaram Morris Goldstein e Nicholas Hardy, do Institute for International Economics, com sede em Washington, esta política não pode fazer sentido ("China´s role in the Revived Bretton Woods System: a Case of Mistaken Identity", www.iie.com). Crescer desfazendo-se de recursos não pode ser uma estratégia sensata. Proposta dois: quando um não quer, dois não fazem. Por alguns anos, vários observadores não-americanos, incluindo Wynne Godley da Universidade Cambridge (e eu), têm argumentado que os déficits em conta corrente dos EUA são explicados mais pelo comportamento do resto do mundo que pelo próprio. O discurso de Ben Bernanke, em março, assinalou o reconhecimento oficial daquilo que o Federal Reserve (o banco central dos EUA) chamou de "opinião ligeiramente incomum", de que o excedente de poupança do resto do mundo teria gerado os déficits dos EUA ("The Global Saving Glut and the US Current Account Deficit", www.federalreserve.gov). A opinião, porém, jamais deveria ter sido considerada incomum, considerando-se dois argumentos: primeiro, os EUA aceitam as políticas cambiais de todos os demais países; segundo, as políticas fiscal e monetária dos EUA têm como objetivo atingir a produção potencial não-inflacionária da economia. À taxa de câmbio real determinada em grande parte pelos tomadores de decisão estrangeiros, surge um gigantesco excesso de demanda por mercadorias e serviços comercializáveis e, portanto, os déficits comerciais. Até 2001, a contrapartida da concessão de empréstimos estrangeiros foi um déficit financeiro sem precedentes do setor privado. Depois do estouro da bolha, o setor público absorveu a maior parte da pressão.

A estabilidade global não pode ser sustentada indefinidamente pela imersão ainda mais profunda dos EUA no endividamento

Se Al Gore tivesse se tornado presidente, também teria ocorrido um forte aumento no déficit fiscal, ainda que sua composição e duração provável pudessem ter sido diferentes. Sem essa expansão fiscal, os EUA quase certamente teriam visto as taxas de juros chegarem a zero, numa tentativa desesperada (e provavelmente infrutífera) de manter o déficit financeiro do setor privado. Proposta três: o ajuste global exige um movimento na direção de déficits em conta corrente por parte dos países receptores dos aportes de capital de longo prazo. Uma condição necessária para o ajuste global bem-sucedido é gerar gastos maiores, em relação à produção potencial, em países que estão acumulando grandes superávits em conta corrente, e vice-versa, para os que estão em déficit. Seria útil se o Japão e a Alemanha, com superávits em conta corrente de US$ 172 bilhões e US$ 104 bilhões, respectivamente, tentassem reduzi-los. A grande mudança, porém, precisa ocorrer entre os países em desenvolvimento. Definamos um "equilíbrio básico" de longo prazo na balança de pagamentos como sendo a soma da conta corrente e da entrada líquida de investimento direto. Em 2004, o resultado foi uma quantia de US$ 523 bilhões para todos as economias de mercado emergentes, US$ 280 bilhões para as economias emergentes asiáticas e US$ 111 bilhões para a China (ou uma impressionante proporção de 7% do seu PIB). Se os EUA quiserem reduzir substancialmente o seu déficit em conta corrente, esses superávits no equilíbrio básico de longo prazo das economias emergentes precisarão cair acentuadamente. Proposta quatro: é preciso promover mudanças na taxa de câmbio, para garantir que o ajuste ocorra a um custo mínimo para a produção real global. O superávit da China na balança de pagamentos básica de longo prazo é grande em relação ao seu próprio PIB. Este último, porém, é apenas um dos muitos países superavitários, com Japão e Alemanha entre os mais importantes. A China é relevante, apesar de tudo, porque uma mudança nas suas políticas poderá funcionar perfeitamente como um gatilho para mudanças mais amplas nas economias de mercado emergentes, especialmente na Ásia. O ponto fundamental, no entanto, é que os EUA não só devem reduzir a demanda em relação à produção, como também devem deslocar a produção na direção de mercadorias e serviços comercializáveis e desviar a demanda por eles, se o país quiser reduzir o seu déficit em conta corrente e, ao mesmo tempo, manter níveis de atividade razoavelmente elevados. Isso explica porque analistas acadêmicos concluem que os EUA precisam de uma grande depreciação da taxa de câmbio real. A única forma eficaz de alcançar a mudança necessária na taxa de câmbio real será através de uma grande queda no dólar e de um salto nos preços internos das mercadorias e serviços comercializáveis. O contrário deverá ocorrer nos países com taxas cambiais reais valorizadas. Conclusão: ponham-se a conversar. Os EUA não conseguem alcançar o seu propósito simplesmente gritando com a China. É preciso, em vez disso, produzir um entendimento mais amplo sobre políticas macroeconômicas, reformas estruturais e regimes cambiais. Esta discussão precisa começar agora. A estabilidade econômica global não pode ser sustentada indefinidamente pela imersão ainda mais profunda dos EUA no endividamento. Por mais confortável que possa parecer no momento, é uma estrada que conduz à ruína.