Título: STF julga embate sobre aborto
Autor: Thiago Vitale Jayme
Fonte: Valor Econômico, 27/04/2005, Legislação & Tributos, p. E1

O Supremo Tribunal Federal (STF) dará prosseguimento hoje a um dos julgamentos mais rumorosos dos últimos tempos. Os onze ministros da corte analisarão a legalidade do aborto de fetos anencéfalos, ou seja, sem cérebro. Entidades da sociedade civil, representantes de diferentes religiões e até autoridades já se manifestaram sobre o tema. Travam a disputa central o jurista Luís Roberto Barroso, advogado da Confederação Nacional de Trabalhadores na Saúde (CNTS), e o procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, católico fiel seguidor da doutrina franciscana e radicalmente contra a possibilidade da interrupção da gravidez. De tão relevante, o ministro relator do caso, Marco Aurélio de Mello, propôs a realização da primeira audiência pública da história do tribunal para debater o assunto. Antes de discutir o tema central do julgamento, os ministros vão debater uma questão de ordem proposta por Fonteles. Para ele, a CNTS não teria prerrogativas para propor a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, dispositivo escolhido por Barroso para colocar o assunto em análise no tribunal. Fonteles levanta também o debate sobre o caráter legislador de uma possível decisão do Supremo a favor do aborto. Esse papel, segundo ele, caberia ao Congresso Nacional e não ao Judiciário. O caso está paralisado por conta de um pedido de vista do ministro Carlos Britto, que recolocará o assunto em discussão na sessão de hoje. Mas Barroso lembra que "a ADPF deve ser conhecida porque trata-se tipicamente de uma matéria para cabimento de ADPF". E completa: "Não há outra via para se chegar ao Supremo com essa discussão. Pelos procedimentos normais, percorrendo todos os graus da Justiça, o feto chega ao desenlace antes de ação chegar ao Supremo." "Há determinados avanços sociais que só podem ser feitos por um tribunal constitucional, e que emperram se forem levados ao processo majoritário convencional, ou seja, ao Congresso", argumenta o advogado. Segundo ele, nos Estados Unidos, por exemplo, a grande decisão sobre o fim da segregação racial nas escolas do país foi tomada na suprema corte, durante o julgamento "Brown vs. Board of Education", em 1954. Se aprovado o questionamento de Fonteles, o Supremo não se pronunciará sobre o tema. As futuras gestantes terão de recorrer à primeira instância e aguardar o lento trâmite de ações na Justiça para saber se podem ou não abortar os fetos sem cérebro. Gabriela de Oliveira Cordeiro foi a última mulher a passar por tal rito. Quando o caso chegou ao Supremo, o parto já havia se realizado. A criança morreu sete minutos após nascer. Como parte de sua argumentação, Barroso apresentou aos ministros um quadro comparativo sobre o tema em outros países. As cortes supremas mais importantes do mundo já trataram do assunto. O aborto - em sua forma geral e não restrito à anencefalia, como é o caso do Brasil - já foi tema de julgamentos nos Estados Unidos (1973), Áustria, França (1975), Itália (1975), Alemanha (1975), Noruega (1983), Portugal (1984), Espanha (1984-85) e Canadá (1988). Já na Argentina, os ministros da corte suprema analisaram um caso idêntico ao brasileiro em 2001 ao avaliarem o aborto unicamente para casos de anencefalia, que foi aprovado. "Essa questão é tão importante que é fundamental que o Supremo se pronuncie", diz Barroso. O jurista vê na questão de ordem o principal obstáculo para a aprovação do aborto de fetos anencefálicos. Com relação ao mérito, a preocupação é menor, pois o próprio relator já se pronunciou favoravelmente ao aborto. Mas Fonteles confia tanto na questão técnica para derrubar a análise do mérito que, em seu parecer, o procurador-geral usa 28 dos 58 pontos de sua argumentação para tentar impedir o Supremo de debater o assunto. Caso a questão de ordem seja derrubada, o ministro Marco Aurélio de Mello proporá a audiência pública. Ele já elencou 13 instituições médicas e religiosas para participar dos debates, além do deputado federal José Pinotti (PFL-SP). O parlamentar é ex-reitor da Universidade de Campinas (Unicamp), onde fundou e presidiu o Centro de Pesquisas Materno-Infantis de Campinas.