Título: Governo toca a máquina e age como autista político
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 28/04/2005, Opinião, p. A20

A última ação efetivamente política do atual governo foi uma não-ação: a recusa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de fazer a reforma ministerial, em retaliação à ofensiva fisiológica do PP de Severino Cavalcanti. Depois disso, a política governamental fechou-se numa espécie de autismo, que consiste em desconhecer as mazelas de seus aliados, embora elas diariamente estejam estampadas nos jornais. Em nome da composição de uma maioria parlamentar que nunca foi realmente constituída, o mesmo governo que recusou o papel de teleguiado do PP se tornou refém do PMDB do ministro Romero Jucá. A agenda governamental diluiu-se em sucessivos fracassos e pulverizou-se - e, junto com ela, a percepção que o país tinha do que seria o projeto do PT para o Brasil. Não se deve entender isso apenas como um efeito 2006. Houve, sim, uma perda da referência da ação política, entendida como o instrumento capaz de viabilizar projetos de governo e de poder. A reeleição tem parte da culpa. A outra parte é nenhuma clareza de objetivos políticos. Quem se arriscaria, hoje, a dizer se a reforma tributária é, efetivamente, uma prioridade do governo? Da mesma forma, todas as vezes que algum ministro ou líder governista fala de reforma política - uma das prioridades do programa eleitoral petista -, a impressão que se tem é que apenas se abre uma comporta para propostas que garantam o status quo dos atuais políticos. Logo após a derrota na eleição para a presidência da Câmara, por exemplo, a questão foi colocada - e o que emergiu dela, com força, foi a idéia de derrubar as cláusulas de barreira que começam a vigorar nas próximas eleições e poderão ser um obstáculo às legendas de aluguel. A PEC Paralela da Previdência, que poderia ser um momento para trazer ao debate elementos novos, acabou se tornando uma potencial bomba relógio contra o equilíbrio do sistema previdenciário. O governo recua porque as chances de derrota existem, é certo. Mas também porque pouco a pouco foi relativizando suas propostas, de tal forma que hoje não é claro o projeto que tem para o país e até que ponto está disposto a bancá-lo. O executivo petista ficou recluso numa política fiscal de resultados e numa política monetária que anda de forma independente. Elas são as suas partes visíveis, assim como a política externa. A administração Lula toca a máquina e faz discursos. O poder virou um fim em si. Prova disso é a própria atuação do PT que está no poder contra a esquerda do partido que, embora minoritária, tem sido fortalecida pelo desconforto da militância em relação ao governo e à própria direção partidária. A manobra da maioria consiste em eleger um presidente com uma "plataforma" - no caso da ala governista, um documento, "Bases de um projeto para o Brasil", que referenda todas as ações do governo Lula, inclusive de política monetária e econômica. Como a maioria é maioria, a aprovação do documento está garantida e submeteria as minorias que hoje tentam discutir internamente o preço da política de alianças com a atual "base parlamentar" e da política econômica do governo. O documento representa uma radical mudança programática do PT, mas nem ao seu próprio partido o chamado Campo Majoritário diz o que botou no lugar das antigas crenças. Não faz, por exemplo, qualquer exercício de um projeto social de médio e longo prazos. O documento fica preso às atuais políticas compensatórias que, sabemos todos, tem o poder estatístico de tirar de uma linha de pobreza definida em R$ 60 reais mensais parcela da população. Nada além. "Bases de um projeto" é quase um referendo à prática de tocar a máquina e se aborrecer o menos possível. O PT mudou muito, isso é louvável. Mas negar o passado, de forma que o mercado também se convença em 2006 - como demorou a se convencer, mas acabou se conformando em 2002 - de que o governo petista não vai dar uma guinada à esquerda, não basta. É preciso saber se o governo tem, de fato, um projeto para o país ou se ele está à deriva de bons desempenhos econômicos, em boa parte obtidos por uma excelente conjuntura internacional. As conjunturas mudam e o país tem que estar preparado para isso. O Brasil moderno é muito pequeno ainda dentro desse imenso Brasil. Há muita coisa a se mudar. O país ainda exige reformas profundas que garantam não apenas a estabilidade econômica, mas a institucional. Para isso, é preciso ter clareza para enxergar a realidade, projeto para o futuro e coragem para confrontar interesses. O poder não se justifica por si. Ele tem que servir ao futuro.