Título: A frágil tese de bancos centrais independentes
Autor: Rui Lyrio Modenesi e André de Melo Modenesi
Fonte: Valor Econômico, 28/04/2005, Opinião, p. A20

A fragilidade metodológica e dos resultados dos testes empíricos revelam que é bem mais difícil, do que pode parecer à primeira vista, justificar a tese da "Independência do Banco Central" (IBC). Essa dificuldade vem sendo, porém, ignorada por alguns analistas e autoridades que advogam sua adoção, como se a IBC estivesse acima de qualquer questionamento. Não é isso que mostram diferentes estudos. Um dos mais conhecidos é o de Alesina e de Summers, de 1993, baseado em amostra de apenas 16 países industrializados. Sua conclusão foi de que, para tais países, a um maior grau de independência dos bancos centrais correspondia uma taxa mais baixa de inflação. Eles admitiram, no entanto, as limitações de sua pesquisa e, conseqüentemente, de seus resultados. Antes, outros autores - Cukierman, Neyapti e Webb -, em 1991, haviam analisado amostra mais ampla e satisfatória, reunindo 72 países, sendo 51 deles em desenvolvimento, inclusive o Brasil. A investigação, contudo, gerou resultados contraditórios, justificando o alerta de que "esses indicadores são incompletos e cheios de ruído", devendo ser usados com reserva. É, pois, no mínimo curioso constatar que os autores do estudo mais citado a favor da tese da IBC foram categóricos ao apontar a precariedade de suas evidências. Com inusitada franqueza, Alesina e Summers reconheceram que seus resultados não eram conclusivos, visto que os dados foram explorados de forma "bastante superficial". Por isso, advertiram: "Uma análise mais detalhada da relação entre a independência do banco central e seu desempenho efetivo, isto é, controle da inflação, é ainda necessária". Que diferença separa os autores dos estudos empíricos dos arautos noviços da tese da IBC! Mais uma vez a história se repete. Fenômeno semelhante ao que ocorre com a tese da IBC verificou-se com a chamada "curva de Phillips". Esta ilustra a existência de uma relação inversa entre a taxa de inflação e a de desemprego, observada na Inglaterra, entre 1861-1913, e nos Estados Unidos, nos anos de 1935 a 1960. Sugeria ser possível obter uma taxa menor de inflação à custa de uma taxa mais alta de desemprego e vice-versa. Ao longo da década de 1960, a curva de Phillips se transformou em uma espécie de pedra fundamental da macroeconomia. Deixou de ser uma simples regularidade estatística e se tornou uma cartilha, que rezava se poder optar por distintas combinações de inflação e de desemprego, por meio de adequadas políticas monetária e fiscal. Nos anos de 1970, o até então desconhecido fenômeno da estagflação, caracterizado pela coexistência de altas taxas de inflação e de desemprego, sepultou a possibilidade de escolha entre inflação e desemprego, negando a validade da curva de Phillips.

Política monetária deve ser atribuição do governo, politicamente responsável e passível a avaliação popular

À semelhança da curva de Phillips, a tese da IBC é hoje uma espécie de norma a pautar a atuação de muitos bancos centrais. Todavia, a evidência fática a favor da tese da IBC é mais frágil do que a que ensejou o longo reinado da curva de Phillips. Apesar do questionável respaldo empírico, a tese da IBC acabou ganhando status de regra universalmente válida. A partir de meados de 1990, passou a ser um dos elementos-chave da política monetária. Parece, porém, mais prudente reconhecer que os resultados dos estudos empíricos não são suficientes para comprovar a existência de causalidade entre independência do banco central e estabilidade de preços. A tese da IBC permanece defendida mais por argumentos teóricos e políticos do que com base nos dados empíricos. Além disso, os seus adeptos não se viram reconfortados com o beneplácito e, menos ainda, com a adesão a ela por parte do papa do monetarismo, Milton Friedman. Este surpreendeu-os, rejeitando a tese por razões não só econômicas, mas também político-ideológicas. Para Friedman, sendo um potente instrumento de gestão macroeconômica, a política monetária tem, também, uma dimensão política mais ampla. Em seu entender, cabe indagar se, numa sociedade democrática, a política monetária pode ficar fora de direto controle social. Há quase duas décadas, no artigo intitulado "Deveria haver uma autoridade monetária independente?", Friedman já advertia sobre os riscos dessa independência. Segundo ele, "a necessidade de dispersar o poder cria um problema especialmente difícil no campo monetário. Há um consenso de que o governo deve ter alguma responsabilidade em assuntos monetários. Há, também, um reconhecimento generalizado de que o controle sobre a moeda pode ser uma ferramenta potente para moldar e controlar a economia". Conclui com uma pergunta retórica: "Seria realmente tolerável numa democracia haver tanto poder concentrado em uma instituição livre de qualquer controle efetivo e direto?" Friedman sustenta que a política monetária deve ser atribuição do governo, que é politicamente responsável por seus erros, pelos quais pode ser punido com a perda do poder pela via eleitoral. Recusa-se, pois, a aceitar que responsabilidade, na política monetária, seja sinônimo de independência dos bancos centrais: "O problema é estabelecer arranjos institucionais que levem o governo a exercer responsabilidade na condução da política monetária; e, ao mesmo tempo, limitar o poder dado ao governo e impedir esse poder de ser usado de maneira a enfraquecer, ao invés de fortalecer, uma sociedade livre". Afinal, sugeriu que a política monetária, transcendendo os limites da economia, não pode ser monopólio da tecnocracia estatal. Deve ser submetida ao escrutínio público e ser regida por critérios que preservem valores éticos e interesses políticos mais abrangentes do que o mero princípio da racionalidade econômica. Negando a seus discípulos "novo-clássicos" aval à temerária tese de independência do banco central, Friedman está no fundo afirmando que a política monetária é instrumento poderoso demais para ficar nas mãos apenas dos economistas.