Título: Sobre política monetária
Autor: Rubem de Freitas Novaes
Fonte: Valor Econômico, 29/04/2005, Opinião, p. A12

No artigo "Alerta Monetário", publicado na edição de 05/10/2004 do Valor , mostrei que as nossas metas de inflação eram incompatíveis com os indicadores de moeda e crédito (passivo e ativo do sistema bancário) registrados desde o segundo semestre de 2003. Hoje, diante da aparente surpresa dos agentes econômicos com a resistência da inflação ao choque de juros, convém explicitar alguns pontos da teoria e da prática monetária que parecem obscuros neste nosso país da jabuticaba, onde sempre se procura explicar os fatos com razões pouco convencionais. Tudo na política econômica gira em torno da escolha de objetivos e instrumentos. É fato sabido que, para que se atinja um certo número de objetivos, precisamos ao menos de um igual número de instrumentos ("n" equações para "n" incógnitas); e que os instrumentos devem ser direcionados a determinados objetivos, segundo o critério das vantagens comparativas de sua eficácia. Normalmente temos como objetivos: a inflação, a atividade econômica (produto e emprego) e o equilíbrio do balanço de pagamentos (reservas ou conta-corrente). E podemos nos valer, em tese, das políticas monetária, fiscal e cambial, para o alcance destes objetivos. Num regime de câmbio flexível pode-se admitir que a preocupação com o balanço de pagamentos desapareça, já que a flutuação do câmbio, por si só, dá conta do recado (simplificando e admitindo que não há preocupação com o endividamento externo). Mas ainda assim restam dois objetivos: inflação e produto, para um só instrumento, política monetária, de vez que a política fiscal é praticamente dada no curto-prazo. Nestas condições, em que a política monetária sozinha tem de se ocupar de objetivos geralmente conflitantes no curto prazo, teríamos de dispor de uma "função-objetivo", determinada por escalões políticos, que pudesse atribuir "pesos" para cada variável, sem o que os dirigentes do Banco Central não poderiam arbitrar "trade-offs" inevitáveis. Em nosso caso, e no de muitos outros países, simplificou-se a questão, estabelecendo-se apenas uma meta de inflação a ser perseguida. E, para alcançá-la, o Banco Central vale-se do controle da taxa básica dos títulos públicos, na expectativa de que possa estar agindo sobre as taxas mais longas, determinantes das decisões de consumo de bens duráveis e de investimentos.

Redução das despesas públicas contribui para o combate à inflação e para melhor eficiência do sistema econômico

Cabe aqui um parêntese para notar que a política monetária não se materializa necessariamente desta forma. No passado, havia a preferência de Bancos Centrais pelo controle dos agregados monetários e chegou-se a cogitar da adoção da proposta "piloto-automático", de Friedman, favorável à fixação, "ad eternum", de uma determinada taxa de expansão monetária, no pressuposto de que as autoridades seriam incapazes de perseguir e corrigir com êxito as flutuações da conjuntura. Com o passar do tempo, a instabilidade da demanda por moeda (ou, inversamente, da velocidade de circulação da moeda) e a dificuldade de determinação do conceito monetário mais relevante para a explicação das flutuações da demanda agregada fizeram com que mais e mais bancos centrais se fixassem na taxa de juros de curto-prazo dos títulos públicos como instrumento de ação com vistas à obtenção de uma determinada meta de inflação. Entretanto, o regime de metas de inflação não se operacionaliza sem sérios problemas: há a dificuldade de reproduzir a complexidade da economia real em um modelo econométrico que tracejaria os caminhos tortuosos que levam da taxa SELIC à inflação; existem as defasagens imprecisas entre a ação governamental e os seus resultados; há a questão da credibilidade com que os agentes econômicos reagem aos atos e declarações das autoridades; e, também, não são poucos os "ruídos" inesperados vindos da economia internacional ou de choques internos de oferta. Por fim, um problema grave pode surgir caso a moeda e o crédito, indissociáveis, caminhem no sentido oposto ao dos juros. Notem que, quando a oferta monetária (e de crédito) se expande em função basicamente das operações de "open-market", inexiste a possibilidade de conflito, já que a subida da taxa SELIC significaria, inquestionavelmente, aperto monetário. Entretanto existem outros canais de expansão monetária (compra de reservas externas, déficit do Tesouro e modificações nos depósitos compulsórios) que permitem a divergência na avaliação da política monetária, conforme se escolha a taxa de juros ou a expansão da moeda e do crédito como indicador do seu grau de aperto ou frouxidão. Dito em outras palavras, para uma determinada taxa de juros, teremos uma política monetária tanto menos apertada quanto mais elásticos forem os indicadores da moeda e do crédito. E pode-se ter uma política monetária frouxa, mesmo com taxas de juros elevadas, desde que a moeda esteja suficientemente descontrolada. Nesse momento de nossa conjuntura, a resistência surpreendente da inflação aos remédios do Banco Central excita nossos economistas heterodoxos, que chegam a responsabilizar os juros altos pelos maus resultados até agora alcançados. A análise destes economistas aponta, ora para uma possível expansão da demanda agregada derivada do "efeito enriquecimento" dos credores do governo com a subida dos juros, ora para um deslocamento dos custos empresariais para cima com o encarecimento do crédito bancário, ora para o crescimento exagerado de alguns preços autônomos e/ou administrados, como razões determinantes dos elevados e persistentes índices inflacionários. Sem dúvidas, estas teses têm um apelo político irresistível, pois dão a perspectiva de um combate indolor, e até prazeroso, à inflação. Mais coerente, entretanto, seria respeitar a tradição econômica e dedicar mais atenção aos velhos e esquecidos indicadores da moeda e do crédito. Vale notar que a redução das despesas públicas muito poderá contribuir para o combate à inflação (e para uma melhor eficiência do sistema econômico), mas não é justo atribuir caráter inflacionário à política fiscal do atual governo quando as receitas crescem, sistematicamente, mais que as despesas públicas (redução do déficit nominal).