Título: Lições da privatização para o presente
Autor: Armando Castelar Pinheiro
Fonte: Valor Econômico, 29/04/2005, Opinião, p. A13

Quando, em 1991, a Mongólia resolveu reformar o seu modelo regulatório nas telecomunicações, ela não titubeou: olhou para o exemplo americano da ATT e decidiu acabar com o monopólio então existente, dividindo em 23 a sua empresa estatal. Pouco pareceu importar que o país tivesse apenas dois milhões de habitantes, a maioria no campo, e uma penetração da telefonia fixa que cinco anos depois ainda era inferior a quatro telefones por 100 habitantes. Esse exemplo serve para ilustrar a influência que a experiência externa exerce nas escolhas de política econômica, levando países muito distintos a adotarem modelos semelhantes, desconsiderando suas características individuais de tamanho, grau de desenvolvimento etc. Foi assim com o liberalismo do final do século XIX, a expansão da regulação e da produção estatais a partir dos anos 1930, a substituição de importações em 1950-70 e as reformas liberais dos anos 1980 e 1990. A globalização financeira, a atuação dos órgãos multilaterais e o progresso nas telecomunicações apenas fortaleceram esse fenômeno. Essas políticas às vezes partem com a mesma rapidez que chegaram, esvaindo-se em meio a um debate público que se move para outras soluções universais. Não há como negar, olhando para trás, que isso também ocorreu com a privatização. Depois de correr mundo, gerar negócios de centenas de bilhões de dólares, revolucionar o mercado de capitais mundial e estimular uma febril atividade acadêmica, a privatização parece ter sumido do receituário econômico ocidental, ainda que continuando influente em países como Índia e China, que a ela aderiram mais tarde. O Brasil não ficou de fora dessas várias ondas, incluindo a privatização. Mas uma série de características próprias - como o seu sistema político fragmentado, que dificulta a obtenção de maiorias estáveis e bem alinhadas - temperou-as com uma dose de pragmatismo e impediu excessos ideológicos. Porém, também entre nós houve pouca reflexão sobre o grau em que cada uma dessas políticas atendia às nossas necessidades individuais. Não foi diferente com a privatização, tanto quando esta chegou, como quando saiu de cena. Terá sido o caminho escolhido em cada caso o melhor para o país? O Brasil não adotou a privatização por conta de um suposto liberalismo das administrações que governaram o país em 1981-2002, ainda que a simpatia por políticas mais liberais tenha aumentado nesse período, como no resto do mundo. Além da influência externa, três objetivos a motivaram: 1) viabilizar o financiamento de investimentos que as estatais precisavam e que o setor público, às voltas com uma grave crise fiscal, não tinha como bancar; 2) resolver os problemas de gestão causados pela propriedade estatal, incluindo as restrições impostas pela Lei das Licitações e a ocupação dos cargos de direção por indicação partidária; 3) facilitar o processo de ajuste fiscal, especialmente depois que a queda da inflação anulou-a como mecanismo de ajuste automático das contas públicas. A privatização perdeu fôlego em 2001 devido a fatores diversos. Ela foi ficando tecnicamente mais difícil quando entrou em setores com modelos regulatórios e estruturas de propriedade mais complexas, como saneamento. A partir de 1998 o ajuste fiscal também passou a calcar-se em bases mais sólidas, diminuindo a sua dependência das receitas de privatização. E a opinião pública se voltou contra o programa, por conta de fatos sem relação direta com ele, como a desvalorização de 1999 e o racionamento de 2001, causado por falhas na geração de eletricidade, que era e permanece 80% estatal.

O Brasil continua faminto por investimentos e a disputa política em torno dos cargos de direção das estatais ainda compromete a sua gestão

A classe política também manobrava contra. Alguns políticos da base aliada se opunham à privatização, pois ela os impedia de indicar seus correligionários para os cargos de direção dessas empresas. À oposição de então, por outro lado, não interessava o enfraquecimento dos influentes sindicatos estatais, seus aliados, a despeito de a privatização ter tido um impacto líquido positivo sobre o emprego, como mostram o setor de telecomunicações e empresas como a Embraer. Também se formou uma idéia generalizada, mas equivocada, de que havia algo de errado na gestão do processo, apesar de este ter recebido seguidos atestados de idoneidade. O TCU, as empresas responsáveis por auditar cada operação, a imprensa, os partidos de oposição, o Ministério Público e o Judiciário investigaram e confirmaram a lisura com que o programa foi gerido. Não é pouca coisa, considerando-se que o programa vendeu 133 estatais, arrecadou mais de 100 bilhões de dólares e atravessou um processo de impeachment presidencial por acusações de corrupção. Que lições se tiram disso? Primeiro, que a privatização não parou porque os problemas que ela procurava resolver desapareceram, nem porque os seus resultados a tenham invalidado como solução para eles, ou devido a fatos novos que a descaracterizassem como uma boa opção de política econômica. Pelo contrário, o Brasil continua faminto por investimentos, a disputa política em torno dos cargos de direção das estatais ainda compromete a sua gestão e a privatização mostrou que pode resolver esses problemas. Segundo, que há muito a ser feito, mesmo que não se queira reiniciar a venda de estatais. A experiência das empresas privatizadas ajuda a identificar o quê. Por exemplo, deve-se indicar conselhos de administração e gestores que efetivamente zelem pelo desempenho das empresas e aumentar a transparência dos seus resultados, separando as operações comerciais das atividades subsidiadas - e colocando o subsídio no orçamento público. A experiência das rodovias privatizadas também ensina que nas concessões se deve cobrar tarifas realistas, pois isso aumenta a eficiência alocativa e gera recursos para manutenção e investimentos, evitando que os usuários paguem pelo uso da estrada com a deterioração acelerada dos seus veículos e o risco de acidentes. Há outras lições importantes. O governo já acenou, pragmaticamente, com a volta da privatização, tanto do IRB como das rodovias federais. Uma reflexão isenta sobre a nossa realidade lhe mostrará que essa é uma política a ser fortalecida e ampliada.