Título: Um teste para a abertura econômica
Autor: Guy de Jonquieres
Fonte: Valor Econômico, 29/04/2005, Opinião, p. A13

"Quando mercadorias não conseguem cruzar fronteiras, exércitos o farão." O aforismo de Cordell Hull, um ex-secretário de Estado dos EUA, é um dos princípios mais medulares e poderosos já expressados para o livre comércio. Colocando de outra forma, a integração econômica promove a geração de riqueza; e a geração de riqueza fomenta a segurança. O axioma serviu bem à Europa; os vínculos comerciais expandidos são a argamassa para os blocos de construção políticos, que tornaram inimaginável uma outra guerra entre seus cidadãos. Ele também comprovou o seu valor no leste da Ásia, embora - ou, talvez, porque - a região carece das normas e mecanismos comuns da Europa para a cooperação. Enquanto o mercado único da Europa foi projetado e conduzido por governos, a Ásia seguiu um modelo de integração mais solto, conduzido pelo mercado e alimentado pela energia empreendedora. Países dilacerados por conflitos há apenas uma geração ficaram entrelaçados pelas envolventes cadeias de oferta internacionais que dão sustentação ao crescimento voltado para as exportações. Embora a crescente interdependência econômica ainda não tenha suprimido antigas inimizades, ela as impediu de obstruir a corrida rumo a um enriquecimento mais intenso. As recentes tensões entre a China e o Japão têm sido o teste mais severo, até agora, desses vínculos e da lógica que os ampara. As greves de trabalhadores chineses em fábricas pertencentes a japoneses, as exortações para boicotar os seus produtos e os ataques contra os seus dirigentes revelam, no conjunto, uma disposição perversa de prejudicar vizinhos às suas próprias custas. No fim, no entanto, prevaleceu o bom senso, removendo os dois lados da beira do precipício. Os líderes da China sabem que a sua legitimidade depende da manutenção da ordem social através de crescimento elevado. Afugentar os japoneses, e, possivelmente, outros investidores estrangeiros, dos quais dependem o crescimento e os empregos, teria colocado esse objetivo em risco. Os riscos são igualmente tão elevados para o Japão: a China é o maior mercado para as exportações, um dos poucos pontos favoráveis da sua economia.

Se China e Japão não se dedicarem à conciliação, pragmatismo econômico não será suficiente para amenizar divergências

Seria temerário supor, porém, que o egoísmo econômico esclarecido continuará se sobrepondo a políticas refratárias e dissonantes indefinidamente. Em primeiro lugar, a sede de matérias-primas continuará opondo a China e o Japão numa disputa global que arregimenta o seu músculo diplomático, além do comercial. Em segundo, cada um deles está competindo cada vez mais para afirmar a sua hegemonia sobre o resto da Ásia. Os esforços para acelerar a integração econômico-financeira na região poderão ampliar, em vez de reduzir, a sua rivalidade. De fato, isso já está acontecendo. Pequim e Tóquio conferem apoio nominal a planos grandiosos para uma Comunidade do Leste Asiático, um projeto irrealizável sem a sua cooperação. Cada um deles, no entanto, está promovendo iniciativas que provavelmente mais segmentarão que unirão os mercados, ao disputarem para concluir acordos bilaterais de "livre comércio" com os seus vizinhos. Essas combinações, que por definição discriminam os demais países, pouco têm a ver com liberação do comércio. É mais provável que elas o impeçam, ao erguerem novas barreiras e regulamentações burocráticas, onerando as empresas. A bem da verdade, elas são mecanismos tosca e politicamente motivados para encurralar os demais países em blocos rivais, tendo a China e o Japão em seus centros. Só podemos imaginar a batalha que seria travada se a Ásia algum dia fosse convocada a escolher entre o yuan e o iene como uma reserva monetária. Paralelamente, outra tendência está turvando a abertura econômica da Ásia. No Japão, Coréia do Sul e Tailândia, há sinais de um nacionalismo econômico recorrente evidente, por exemplo, nos esforços para frustrar as indesejadas tentativas de compra estrangeiras. À medida que a concorrência internacional ultrapassa fronteiras e se acerca do núcleo das economias, ela aparenta estar ressuscitando antigas fobias e criando novas inseguranças, tendo os estrangeiros como alvo. Os manifestantes chineses teriam ficado tão enfurecidos se as onipresentes marcas japonesas não oferecessem um alvo tão tentador para o seu rancor? Nada disso implica que as portas estão se fechando por todo o leste da Ásia: a onda da globalização ainda está se propagando a uma velocidade acelerada demais para refluir. Políticas xenófobas cá são ofuscadas pelo liberalismo acolá. É improvável que se desenvolvam blocos econômicos excludentes, pois todos desejam estar em todos eles. A próxima fase da integração de mercado da Ásia, porém, poderá ser mais turbulenta e mais dependente de contra-fluxos políticos. A menos que os governos se dediquem mais para conciliar diferenças abismais, o pragmatismo econômico por si só poderá já não ser mais suficiente para amenizar as divergências.