Título: O contexto jurídico do mercado de carbono
Autor: Ali El Hage Filho, Ana Luiza Lourenço, Fernando Ta
Fonte: Valor Econômico, 11/10/2004, Legislação & Tributos, p. E- 2

"Ainda são muitas as lacunas legais a serem preenchidas e regulamentadas"

"Ainda são muitas as lacunas legais a serem preenchidas e regulamentadas"

O contexto jurídico do mercado de carbono Por Ali El Hage Filho, Ana Luiza Lourenço, Fernando Tabet, Jean Arakawa, Marcelo Paolini e Renato Portella

O aquecimento da temperatura global, resultado do acúmulo crescente de emissões de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera, é o pano de fundo para o surgimento do mercado de carbono. Em 1992, foi assinada a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (CQMC), que reconheceu a responsabilidade comum de todos os países do globo pelo problema do efeito estufa, porém diferenciada segundo a participação de cada um no contexto geral: aos países desenvolvidos, industrializados, historicamente mais poluidores (países inseridos no anexo I da convenção, incluindo também Rússia), atribuiu-se uma parcela maior dessa responsabilidade. Naquela ocasião, foram estabelecidas metas de redução de emissões para os países do anexo I. Em 1997, com a adoção do Protocolo de Kyoto, foram estabelecidas novas metas de redução de emissões para os países do anexo I: pelo menos 5%, sobre a quantidade de emissões registradas em 1990, a serem verificadas no período entre o ano de 2008 e o ano de 2012. Para auxiliar o cumprimento dessas metas, foram instituídos mecanismos de flexibilização, dentre os quais o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), que tem por objetivo estimular o desenvolvimento sustentável nos países em desenvolvimento (países não-anexo I) como o Brasil. Por meio do MDL, os países do anexo I (incluindo o próprio governo e empresas do setor privado) podem investir em projetos de redução de emissões de gases de efeito estufa ou projetos de seqüestro de carbono, em países não-anexo I, e obter Reduções Certificadas de Emissão (RCE) que vierem a ser originadas desses projetos. As RCE representam quantidades reduzidas de emissão de gases, que podem ser deduzidas de uma parcela das metas de redução de emissões estabelecidas para os países do anexo I. O desenvolvimento de um projeto de MDL compreende algumas etapas, incluindo sua aprovação pela autoridade nacional designada (no Brasil, uma comissão interministerial instituída especialmente para esse fim), validação, registro, verificação e certificação, antes da emissão das RCE. O projeto deverá ainda atender a critérios de elegibilidade previstos no Protocolo de Kyoto. Porém, para que o protocolo entre em vigor, deverá ainda ser ratificado por países do anexo I que contabilizem pelo menos 55% das emissões, o que acontecerá quando a Rússia (17,4% das emissões) concretizar sua recém-anunciada ratificação, se esta for aprovada pelo parlamento russo (Duma). Independentemente, porém, da entrada em vigor do Protocolo de Kyoto, alguns países têm estimulado o desenvolvimento do mercado de carbono. Na União Européia, por exemplo, já foi inclusive estabelecido um arcabouço jurídico específico para viabilizá-lo. Japão e Canadá também estão implementando iniciativas similares.

No Brasil, uma série de considerações sobre este mercado devem ser estudadas sob o enfoque jurídico

No Brasil, uma série de considerações relativas ao desenvolvimento desse mercado devem ser estudadas sob o enfoque jurídico. Quanto ao ingresso e saída de capitais estrangeiros, seja para financiamento de projetos de MDL ou para negociação de RCE (ou de direitos a elas relacionados) no país, apesar de não haver regulamentação específica para operações com tais finalidades, nada impede que as mesmas ocorram ao abrigo das normas cambiais atualmente vigentes. A exemplo do que ocorre em outros países, como nos Estados Unidos, na Chicago Climate Exchange, as RCE poderão vir a ser negociadas em bolsa no Brasil. Notícias recentes dão conta de que o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior está estruturando um mercado brasileiro de redução de emissões, no qual a Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F) seria a responsável por manter um sistema eletrônico de compra e venda de RCE. Por ora, no entanto, não há regulamentação específica para tais operações, o que deve ocorrer somente após a formação de um entendimento sobre a natureza jurídica das RCE pelas autoridades brasileiras, em especial, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Para viabilizar a negociação em bolsa das RCE e a formação de um mercado secundário que lhes proporcione liquidez, além da necessária regulamentação por parte da CVM, há a necessidade de padronização das RCE. Enquanto isso não acontece, resta a opção de se estruturar um modelo próprio ("out of Kyoto compliance"). Vale assinalar, contudo, que a inexistência de regulamentação, seja para negociação em bolsa ou fora dela, não proíbe as partes interessadas de contratar privadamente uma negociação de RCE. No tocante a aspectos fiscais, o cenário atual não contempla a existência de incentivos ou de uma eventual implicação fiscal específica, com relação ao financiamento de projetos de MDL ou para a negociação de RCE. Os empreendedores desses projetos, entretanto, devem observar as regras gerais de contabilização relativas à assunção de obrigações (no caso do financiamento de projetos de MDL) e à alienação de ativos (no caso de negociação de RCE). Por sua vez, deve ser considerada a mitigação dos riscos inerentes a um projeto de MDL por meio da contratação de seguro e resseguro. Seguradores e resseguradores, no entanto, podem ainda ser relutantes em oferecer coberturas a riscos de difícil quantificação ou precificar o seguro em valores impraticáveis. Tais riscos relacionam-se tanto ao desenvolvimento, construção e conclusão do projeto quanto a seu desempenho operacional, adicionalmente aos riscos políticos e institucionais, possivelmente presentes. Como se nota, ainda são muitas as lacunas legais a serem preenchidas e regulamentadas para que o processo de negociação das RCE se torne completamente transparente. Não obstante, o grande interesse despertado pelo mercado paralelo atualmente em formação, bem como a atuação do Banco Mundial e outras organizações constituem indícios muito representativos de que os governos e a iniciativa privada não irão aguardar a entrada em vigor do protocolo para participarem ativamente do mercado de carbono.