Título: O efeito Severino na democracia brasileira
Autor: Fernando Luiz Abrucio
Fonte: Valor Econômico, 02/05/2005, Política, p. A8

As vaias recebidas ontem pelo deputado Severino Cavalcanti nas comemorações do Dia do Trabalho podem atingir, por tabela, a imagem da classe política brasileira. É claro que uma parcela da opinião pública sabe separar o joio do trigo. Mas a enorme exposição diária do presidente da Câmara Federal, este incansável produtor de equívocos sobre a política democrática, tem o potencial de aumentar o sentimento antipolítico na grande massa do eleitorado, sejam os mais pobres e menos informados, seja a classe média. Os principais líderes do país precisam evitar este processo, independentemente de estarem na situação ou na oposição. É este caldo de cultura de descrédito em relação aos políticos que alimenta a criação de figuras como a de Hugo Chávez. Justiça seja feita: Severino não é o único político a emitir opiniões estapafúrdias capazes de colocar os políticos em descrédito. Nos seus famosos discursos de improviso, o presidente Lula já criou várias frases que agridem o bom senso, como o da relação entre os altos juros e a passividade da classe média, que não levanta o seu "traseiro" para reclamar. A bem da verdade, vários governantes já cometeram deslizes como este. Porém, o estilo Severino de fazer política é maior do que suas frases - e aqui é que mora o perigo. O estilo Severino de fazer política tem três características básicas. Primeira: o interesse público é visto como extensão do domínio privado. Segunda: usa-se o poder do cargo público para negociar escancaradamente benefícios individuais, partidários ou regionais. Terceira e a pior de todos: a apresentação contínua de idéias demagógicas sem preocupação com os efeitos práticos destas propostas - é a resposta simplista do "homem comum", só que feita por um líder político que tem a obrigação de conhecer a complexidade das políticas públicas e das decisões coletivas numa sociedade democrática. A mistura entre o público e o privado é comum na história brasileira e, portanto, não foi inventada pelo deputado Severino Cavalcanti. Todavia, desde a recente redemocratização do país, os principais líderes sociais e políticos têm procurado combater esta forma anti-republicana, por meio de denúncias na imprensa, CPIs e até do impeachment de um presidente. No máximo, o patrimonialismo e o fisiologismo eram praticados às escondidas e não eram defendidos em público. Ao defender a nomeação de seu filho e obtê-la em nome dos "vencedores", Severino projeta na sociedade a imagem do político como aquele que busca apenas usar o Estado ao seu favor. Ninguém do governo e tampouco da oposição transformou esta ode ao clientelismo num escândalo de grandes proporções. Tudo bem: o Congresso agora está discutindo a lei contra o nepotismo, dirão com razão alguns leitores, mas não houve uma forte pressão dos principais partidos contra este episódio em particular. Tal omissão pode ser mal vista pela sociedade, e há o risco de grande parcela da população achar que todo político é um Severino em potencial.

Está em jogo a imagem da classe política

O nepotismo não é a única forma de exercício do poder contida no estilo Severino. O presidente da Câmara transformou a posse de seu cargo num instrumento contínuo de chantagem explícita junto ao Executivo. E aqui é preciso diferenciar a saudável autonomia do Legislativo e o imprescindível controle entre os Poderes, da pressão por benefícios ancorada na ameaça de jogar o Congresso contra o governo. Se quer obter uma verba ou agilizar a transferência de dinheiro de bancos oficiais para seu estado, lá vai Severino Cavalcanti discursar num dia para ganhar algo no outro. Aliás, talvez ele seja o presidente da Câmara que mais viaja para suas bases políticas, contabilizando junto aos seus eleitores os recursos que obteve em seu jogo com o governo federal. A pior característica do severinismo, no entanto, é a apresentação cotidiana de propostas completamente demagógicas. Ora, retrucaria o leitor, vários políticos fazem isso, particularmente no período eleitoral, em qualquer democracia. Só que Severino Cavalcanti não está em campanha junto à sua base política: ele é presidente da Câmara Federal, um dos Poderes da República, e suas palavras têm um peso enorme. Ele acredita que basta falar coisas agradáveis ao homem comum, soluções miraculosas para problemas complexos, que assim terá simpatia popular. As vaias ouvidas no evento da Força Sindical demonstram o contrário. A razão disso está na constatação de que o eleitorado, mesmo o que tem menos educação e informação, não é bobo como parece. O cidadão brasileiro, tanto o de classe média como os pobres da periferia, percebe a incongruência entre os diversos atos do deputado Severino, que um dia defende o emprego para seu filho, noutro jura amores pelo governo, no seguinte chama o Executivo de "autoritário", e no fim comemora publicamente a obtenção de algum recurso para sua cidade natal. O deputado Severino Cavalcanti sofre daquilo que a ciência política chama de "problema de reputação". Como a sociedade pode acreditar em suas críticas ao caráter autoritário das medidas provisórias se ele próprio foi um defensor ardoroso do regime militar? Como a opinião pública pode acreditar em suas críticas à política econômica se ele é o primeiro a defender o uso perdulário e corporativo - no caso, beneficiando a si próprio - dos recursos públicos? Como a população brasileira pode acreditar em sua autoridade pública se ele é o primeiro a, na primeira oportunidade, empregar seus parentes, quando o país tem um enorme número de desempregados? Pela importância do seu cargo, por conta de sua enorme exposição pública e, principalmente, por não haver uma reação digna do que está acontecendo por parte dos maiores partidos, da situação e da oposição, a população pode imaginar que Severino tenha uma forte legitimidade junto aos seus pares. Daí a tornar o presidente da Câmara um espelho de toda a classe política é um pulo. As vaias de ontem são o primeiro aviso de uma percepção que pode estar se instalando em boa parte da sociedade brasileira.