Título: O que falta para o efetivo controle dos gastos públicos
Autor: Valdemir Pires
Fonte: Valor Econômico, 02/05/2005, Opinião, p. A12

A importância de controlar os gastos públicos costuma ser percebida somente depois do ponto crítico em que seu volume já ameaça a saúde da economia e/ou o bolso dos contribuintes. Essa espécie de imprevidência coletiva, sorrateiramente aproveitada por governos, dolosamente ou não, geralmente cobra um altíssimo preço social. Por isso é preciso superar a condição sazonal do vigor dos concebíveis mecanismos de controle das despesas governamentais. Controlar os gastos públicos não é apenas conter o seu volume e o custo de financiamento, decorrente de dívidas eventualmente assumidas. É, antes disso, assegurar que estes sejam gastos de qualidade, dotados de eficiência, eficácia e efetividade. A eficiência garante a melhor relação custo-benefício (por exemplo, construir uma ponte de qualidade e durabilidade aceitáveis, ao menor custo possível). A eficácia assegura que o objetivo do gasto seja atingido (por exemplo, uma ponte que liga dois pontos que estavam, de fato, carecendo desse tipo de ligação e não de outro mais barato). A efetividade diz respeito ao público-alvo beneficiado pelo gasto (por exemplo, uma ponte que melhora as condições de vida e/ou de trabalho de uma determinada comunidade, dentre todas a mais necessitada no momento da decisão de investimento). Para que os governos, nos diferentes níveis da federação, consigam implementar e manter um rigoroso monitoramento de suas despesas, será necessário que ao longo dos próximos anos - senão décadas - esses mesmos governos, juntamente com os grupos sociais atentos à problemática das finanças públicas, adotem sistemas de controle interno, de controle externo e de controle social dos gastos públicos. Os três sistemas devem ter os mesmos objetivos, além da legalidade: economia, benefício coletivo e transparência. Mas cada um deles deve ser manejado por diferentes atores, caminhando na direção da menor para a maior amplitude. O controle interno é feito pelo Poder Executivo, tendo um caráter eminentemente técnico. O controle externo é feito pelo Poder Legislativo, com auxílio técnico dos Tribunais de Contas. O controle social é feito por meio de mecanismos criados para assegurar a participação dos cidadãos. Para que não se tenha um falso controle dos gastos público, é preciso, entretanto, que os três sistemas existam concomitante e complementarmente. Se o controle interno, por exemplo, não produz ou não fornece informações adequadas, a maior parte dos esforços do controle externo é desperdiçada em solicitações de esclarecimento, correções e discordâncias, desviando-se o controle social para denúncias e descontentamento. Se o controle externo é omisso, o controle social perde um aliado. Se o controle social não existe, a falta de vigilância cidadã pode tornar frouxo o controle externo tradicional.

É preciso unir o controle interno, o externo e o social e avisar os interessados, antes que os inimigos os destruam

Mas, de fato, o problema do descontrole dos gastos públicos não é decorrente somente da falta, insuficiência ou inadequação de sistemas de controle. É, acima de tudo, causado por elementos culturais de difícil reversão. Enquanto a finança pública não for percebida como uma importante geradora das dificuldades arduamente enfrentadas pelos indivíduos e famílias e, por outro lado, não puder ser tomada como forte aliada para a constituição de melhores cenários para os objetivos pessoais e coletivos, as únicas formas de controlar os gastos públicos continuarão sendo medidas de força (como a Lei de Responsabilidade Fiscal, que necessariamente se desgasta com o tempo) ou arremedos de controle social (como muitos orçamentos participativos, que podem até ter algo de participativo - e olhe lá de que tipo! - mas nada têm de orçamento). Felizmente o Brasil, nos últimos anos, tem sido palco de um conjunto bastante promissor de iniciativas potencialmente conducentes à elevação da qualidade do controle dos gastos públicos. Só falta juntar todos eles de forma sistemática e "avisar" os interessados, antes que os inimigos os destruam, para benefício de seus interesses muitas vezes inconfessáveis. Mas se é fácil saber quem são os inimigos do controle efetivo dos gastos públicos no Brasil, ainda é preciso perguntar quem são, mesmo, os interessados nele. Quantos brasileiros sabem de quanto é o orçamento do município onde reside? Quantos deles sabem que o valor pago de juros, por mês, pelo governo federal, sobre a dívida mobiliária, corresponde a vários, às vezes centenas de anos desse orçamento municipal? Quantos, de resto, têm um mínimo de preocupação com as contas do próprio condomínio (a não ser depois de estouradas) ou do clube recreativo de que é sócio? Quantos brasileiros sabem que desde a Lei de Responsabilidade Fiscal, de 2000, os números das contas públicas devem estar plena e regularmente disponíveis, inclusive online? Quantos têm disposição para se envolver em práticas preventivas, na verdade defensivas, contra o abuso na lida com o dinheiro público? De fato, os requisitos técnicos e tecnológicos para controlar os gastos públicos, assim como o aparato legal para utilizá-los, são hoje dados de realidade no Brasil. O déficit existente é de requisitos políticos e ideológicos. Desde a Constituição de 1988 até a Lei de Responsabilidade Fiscal, as normas e as estruturas de controle têm aumentado e se sofisticado; desde a criação da Secretaria do Tesouro Nacional (uma profunda mudança administrativa) e do Sistema de Administração Financeira - Siafi (uma revolução tecnológica na gestão financeira e orçamentária da União) - até a fase atual de consolidação da Controladoria Geral da União, observa-se uma caminhada digna de respeito. Os desafios em pauta são: 1) um melhor aproveitamento desses avanços no nível federal, somando-os a outros poucos obtidos em alguns estados e municípios; e 2) o desenvolvimento de amplos e sistemáticos esforços para que nas esferas subnacionais os controles também se tornem realidade, promovendo assim uma nova relação Estado-sociedade civil, embebida da rara mas crescentemente necessária cultura da vigilância sobre as finanças públicas.