Título: Déficit norte-americano precisa ser revertido
Autor: Gustavo Loyola
Fonte: Valor Econômico, 02/05/2005, Opinião, p. A13

É quase consenso entre os economistas que o déficit externo norte-americano não pode ser sustentado, nos níveis atuais, por um período longo de tempo. Objeto de muito debate, porém, é a questão do "como" e do "quando" esse déficit será revertido. Alguns apostam numa reversão lenta, gradual e segura, sob as rédeas de um esclarecido e onisciente "Federal Reserve". Outros põem todas as fichas na hipótese de uma reversão abrupta e desastrosa, sob os olhares impotentes do FED. Entre esses dois extremos, inúmeros cenários intermediários são considerados nas análises. Esse estado de coisas é particularmente angustiante quando se trata de traçar cenários para a economia brasileira. Embora pareça provável que o Brasil acabe vitimado por um acidente qualquer provocado pelo atual desequilíbrio das contas externas dos EUA, pouco se sabe sobre a possível magnitude desse acidente e sobre o momento de sua ocorrência. Felizmente, o Brasil se encontra hoje menos vulnerável a choques externos do que no passado recente, graças ao espetacular desempenho da balança comercial e à redução do endividamento vinculado à moeda estrangeira. De toda sorte, é importante tentar compreender a gênese do presente desequilíbrio externo norte-americano, com vistas a analisar as possíveis conseqüências de sua reversão, abrupta ou gradual, sobre a economia mundial e sobre os países emergentes, como o Brasil. Como bom ponto de partida, poder-se-ia considerar o recente discurso do "Vice-Chairman" do FED, Roger Ferguson, em que são apontadas cinco possíveis causas, não mutuamente excludentes, para o déficit em conta-corrente dos EUA, a saber: o déficit fiscal; a queda autônoma da taxa doméstica de poupança; a explosão do crescimento da produtividade da economia norte-americana; a queda na demanda externa; e o aumento da intermediação financeira global. Como se vê, os três primeiros fatores são internos aos EUA, e os dois últimos, externos. Baseados em simulações realizadas pelo FED, Ferguson minimiza a importância do déficit fiscal no desequilíbrio externo dos EUA, contrariando o previsto pela maioria dos modelos macroeconômicos. Segundo essas simulações, o aumento do déficit fiscal teria primariamente deslocado ("crowded out") o consumo e o investimento privados, mas não as exportações líquidas. De forma quase idêntica, Ferguson descarta a queda da poupança doméstica como causa relevante do déficit em conta-corrente, pois essa queda teria afetado primordialmente a taxa doméstica de investimento e não as exportações líquidas norte-americanas. Quanto ao crescimento da produtividade nos EUA, porém, as conclusões são distintas. De fato, as simulações mostram que esse fator teve um papel muito mais relevante na elevação do déficit em conta-corrente do que o aumento do déficit fiscal e a redução da poupança doméstica. A elevação da taxa de retorno dos investimentos, derivada do aumento da produtividade do trabalho, seria a causa da redução das exportações líquidas.

Ajuste rápido e tormentoso dos EUA, se ocorrer, atingirá emergentes mas não causará crise profunda nos mercados financeiros internacionais

Por outro lado, ao considerar os fatores externos, Ferguson conclui que tanto a queda do consumo e do investimento no resto do mundo, quanto o aumento da intermediação financeira global, ajudam a explicar o déficit em conta-corrente dos EUA. A queda da absorção externa é atribuída em parte às políticas deliberadas de manutenção de moedas relativamente depreciadas, como é o caso dos países asiáticos. Um caso particular, como salientando num outro trabalho, pelo também integrante da direção do FED, Ben Bernanke, é o dos países emergentes que, como o Brasil, foram obrigados a gerar superávits em conta-corrente para reduzir sua vulnerabilidade a crises externas, não obstante ser essa uma situação anômala, considerando a crônica insuficiência de poupança doméstica nesses países. Adicionalmente, a maior eficiência na intermediação financeira em termos globais tem contribuído para a redução da preferência dos aplicadores por ativos domésticos ("home bias"), facilitando o fluxo de capitais externos para os EUA, país de menor risco percebido e com instituições que melhor protegem os credores. Embora as simulações de Ferguson devam ser acolhidas com os cuidados de praxe, por se tratar de resultados decorrentes de modelos econométricos, elas são úteis para a análise da trajetória futura do déficit em conta-corrente dos EUA e os seus efeitos nas economias emergentes. Em linhas gerais, as conclusões do mencionado trabalho são de que a "culpa" pelo déficit externo dos EUA está primordialmente na maior força relativa de sua economia (crescimento de produtividade, instituições, etc.), combinada com deliberadas políticas cambiais de terceiros países para estimular as exportações, tudo isso num ambiente de maior eficiência na intermediação financeira global. Se assim for, o papel de políticas macroeconômicas de curto prazo na reversão do déficit externo dos EUA seria relativamente modesto. Suas causas são estruturais e haveria a necessidade de que o resto do mundo, principalmente as economias industrializadas, perseguir políticas de crescimento, por meio de reformas microeconômicas que diminuíssem o fosso hoje existente em relação aos EUA, abandonando os países da Ásia a estratégia de manter desvalorizadas suas moedas. Desse modo, o ajuste do déficit dos EUA seria lento e gradual, provavelmente sem maiores traumas no mercado internacional de capitais e sem redução expressiva do crescimento global. No entanto, a hipótese de um ajuste mais rápido e tormentoso não pode ser afastado. Isso ocorreria caso os investidores do resto do mundo percebam como excessivo o endividamento externo norte-americano e busquem rapidamente reequilibrar suas carteiras de investimentos. Nessa situação, países como o Brasil seriam momentaneamente atingidos, mas sem que houvesse crise mais profunda nos mercados financeiros internacionais, já que os fundamentos da maior economia do globo continuariam sólidos.