Título: BM&F prepara internacionalização
Autor: Cristiane Perini Lucchesi
Fonte: Valor Econômico, 02/05/2005, Finanças, p. C1

Os chineses grafam a palavra crise com dois ideogramas. Separadamente um deles significa perigo e o outro, oportunidade. A Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F) soube aproveitar as oportunidades criadas com a crise pela qual passou na época da desvalorização cambial de 99, que chegou a levar seus dirigentes a uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Deu a volta por cima, se consolidou, cresceu e ganhou importância inédita. Hoje, com superávit no orçamento, caixa fortalecido e corretoras maiores e mais capitalizadas, a BM&F prepara-se para a internacionalização. Está para conseguir autorização do governo para negociar seus contratos financeiros com os estrangeiros direto de sua subsidiária em Nova York -os investidores não mais precisariam de representante no Brasil para negociar, depositar garantias e margens diárias. É como já acontece com os contratos agrícolas. A internacionalização deve fazer crescer ainda mais o volume de contratos negociados pela BM&F. "Os derivativos dos títulos da dívida externa brasileira que oferecemos poderão ganhar liquidez e a BM&F poderá se tornar um grande e importante mercado formador de preços de papéis da dívida do Brasil", comentou Edemir Pinto, diretor-geral da BM&F, em entrevista ao Valor logo após visita no Banco Central para tratar do assunto. Hoje, a participação dos estrangeiros na BM&F é de 12%. Em grande parte por causa do investidor externo interessado nas altas taxas de juros brasileiros, o volume de contratos negociados na BM&F vem crescendo a olhos vistos. No primeiro trimestre deste ano o aumento foi de 10% sobre uma base já elevada que cresceu 54% no ano passado. O total negociado chegou a 183,2 milhões de contratos em 2004, o equivalente a mais de US$ 6,4 trilhões, o maior volume registrado desde 1997. Com isso, as receitas crescem. O superávit operacional da Bolsa nos primeiros três meses do ano já chegou à metade de todo o ano passado: R$ 10,5 milhões. O resultado total foi de R$ 29,640 bilhões. Em 2004, a Bolsa teve superávit de R$ 77,584 milhões no orçamento, sendo R$ 21,528 milhões operacionais e o resto com aplicação do caixa. Mas a BM&F não é mais apenas uma bolsa de mercadorias e futuros. A entidade se tornou referência como câmara de compensação, liquidação e contraparte central -assume riscos na hipótese de uma liquidação não ser honrada- não só no Brasil, mas em toda a América Latina. A resistência às crises de sua Clearing de Derivativos, cujo sistema de gerenciamento de riscos foi desenvolvido pela própria BM&F, é a razão para isso. "Muitos achavam que nossa clearing não iria aguentar àquele solavanco da desvalorização cambial de 99", comenta Manuel Felix Cintra Neto, presidente da BM&F. A entidade e sua clearing saíram vivas da desvalorização de mais de 100% no câmbio e da CPI que apurava os casos dos bancos Marka e Fonte Cidam. "A BM&F foi desnudada naquela época e as autoridades do país viram que não tínhamos nada a esconder", afirmou Cintra Neto. Foi justamente a crise de 99 que fez a entidade ganhar mais credibilidade junto a bancos internacionais, ao Banco Central e à Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Com isso, na criação do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), em abril de 2002, a BM&F saiu à frente da Federação Nacional das Associações de Bancos (Febraban) e ficou responsável pela Clearing de Câmbio. Após disputa com várias entidades, ficou também com a Clearing de Ativos -que negocia títulos públicos federais e de bancos. Embora seus dirigentes neguem, a BM&F quase levou a própria CBLC, a câmara de compensação da Bolsa de Valores de São Paulo. Hoje passam pela BM&F 95% do mercado à vista de câmbio brasileiro, ou US$ 1,6 bilhão por dia, e 60% do mercado secundário de títulos públicos, ou R$ 6 bilhões/dia. A entidade tem um banco operando há cinco meses que facilita a liquidação de operações diretamente com os clientes finais. "O SPB transfere o risco de não-pagamento ao setor privado e nosso know-how como contraparte central nos garantiu papel de destaque", disse Pinto. Esse know-how da BM&F foi reconhecido pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O banco encampou iniciativa da BM&F e a ampliou. Inicialmente a idéia era usar a experiência da Clearing de Câmbio no Brasil para criar uma câmara de compensação e liquidação de contratos de comércio exterior entre os países da América Latina. As operações nas mais diferentes moedas seriam liquidadas pela diferença entre o total importado e o total exportado. Agora, o projeto da Cicom (Câmara Interamericana de Compensação) ganhou nova dimensão. A idéia é compensar e liquidar operações títulos da dívida externa de países e empresas da América Latina com a criação de uma espécie de Euroclear da região. O primeiro módulo da Cicom, que vai se restringir ao comércio exterior entre Brasil e Argentina, deve entrar em vigor já no ano que vem. Os planos de atuação na China também são grandiosos. Hoje, a entidade tem um escritório de representação em Xangai. "A longo prazo -pois na China tudo é no longo prazo- nós queremos vender contratos até para pessoas físicas", disse Cintra Neto. Neste momento, a entidade já acertou com a Bolsa de Rosário, na Argentina, a criação de um contrato futuro de soja que reflita os preços do Brasil e da Argentina para fornecer ao importador chinês proteção financeira ("hedge") mais adequada. Falta apenas conseguir autorização das autoridades chinesas para que as maiores empresas da China possam atuar com a BM&F, o que Cintra Neto acredita seja apenas uma questão de tempo. Percebendo o mercado crescente, a Chicago Board of Trade (CBOT), bolsa de futuros dos Estados Unidos e concorrente da BM&F, já está lançando o contrato de soja sul-americano. Cintra Neto acredita que, com a saída de 18 corretoras da BM&F no chamado programa de fortalecimento, a entidade está pronta para a internacionalização. "Não adianta a bolsa estar fortalecida financeira e tecnologicamente, mas os seus corretores, que são quem acessa os clientes finais, continuarem fracos", afirmou. "É como o corpo crescer e os braços não", comparou. No início do ano, a BM&F passou a exigir capital de giro próprio mínimo de R$ 2,5 milhões para suas corretoras, e não mais de R$ 200 mil. Fez outras inúmeras exigências de qualificação técnica e de compliance.