Título: Um impasse atrás do outro na negociação UE-Mercosul
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 13/10/2004, Opinião, p. A-8

As tentativas de acordo comercial entre o Mercosul e a União Européia seguiram um roteiro insólito: em vez de as propostas melhorarem à medida que as negociações se desenrolavam, elas pioraram cada vez mais ao longo do caminho. É praticamente impossível chegar-se a um denominador comum com algum grau de ambição até a data de 31 de outubro. Reuniões como a do dia 20 entre chanceleres do Mercosul e o chefe dos negociadores europeus, Pascal Lamy, têm mais a função de manter o diálogo entre os blocos do que resolver divergências. Nenhum avanço foi conseguido desde o último encontro de alto nível do bloco com a UE. Os europeus chegaram a acenar com um acordo mínimo, que poderia ser desdobrado e ampliado depois, quando entrar em cena o novo time de comissários, a partir de novembro. Em proposta informal, não oficial - outra das características tortuosas dessas negociações, cujas ofertas e contra-ofertas raramente foram formalizadas - a UE retrocedeu a sua primeira oferta, a de conceder o acesso imediato a 60% das cotas agrícolas para carnes, milho, trigo e lácteos. Reduziu bastante, porém, o volume das cotas. Ele seria de 245 mil para a carne de frango e de 156 mil para a carne bovina. Passaram agora a, respectivamente, 75 mil e 60 mil toneladas no total. Cálculo preliminar apontou que os ganhos do Mercosul entre a proposta inicial e a última feita declinariam de US$ 1,4 bilhão para US$ 820 milhões, apenas nesses itens. A nova oferta mínima foi considerada acertadamente como ruim pelos negociadores brasileiros e desanimou entidades do agronegócio, que vinham pressionando o governo por mais concessões em outros setores por enxergar vantagens nítidas, ainda que menores, no que os europeus tinham colocado na mesa. Assim, a vantagem inicial no acesso de mercado a produtos agrícolas, um dos pilares das negociações do ponto de vista do governo brasileiro nas discussões da Organização Mundial de Comércio, da Alca e do acordo com a UE, se desmanchou no ar. Salvo uma mudança radical de atitude de ambos os lados, até mesmo um acordo-quadro tornou-se improvável, ainda que os europeus aceitem algumas das "bases mínimas" que o Mercosul propôs, como a de que administração das cotas seja feita pelos exportadores. A intervenção do presidente Lula a favor de mais empenho em busca de um acordo com a UE tem poucos efeitos práticos. O ministro da Fazenda, Antonio Palocci, entrou em campo com idéias baseadas no fato de que a inclusão da Cofins e IPI em bens importados elevou a proteção tarifária nacional em cerca de 10 pontos percentuais, uma indicação de que o Itamaraty poderia ser mais ousado nas ofertas para os europeus. Palocci acha que essa proteção poderia cair imediatamente para bens que estão com sua capacidade de produção interna no limite, como é o caso de produtos siderúrgicos, papel e celulose e alguns produtos químicos. É pouco provável que a redução nestes produtos específicos tivesse grande efeito sobre o destino das negociações, já que o Brasil é muito competitivo nos setores apontados e de não estarem no centro das atenções dos europeus, que acham o conjunto da proposta brasileira muito ruim. E, no caso dos automóveis, foram entendidas como provocação - cota de 25 mil veículos, com tarifas que só cairiam após o oitavo ano e quase duas décadas (18 anos) para que elas chegassem a 0%. A UE considerou um retrocesso a inclusão de mais produtos do que o prometido na categoria de preferências tarifárias - que não serão zeradas. Pelo cálculo dos europeus, isso reduziu o compromisso de liberalização de 87,5% para 77%, em vez de avançar rumo ao mínimo de 90%. Para além da complexa discussão técnica, as mudanças das propostas do Mercosul tiveram um efeito político indesejado, segundo diplomatas da UE: retiraram poder de barganha de países que pressionavam o bloco para fechar em tempo hábil o acordo. Desagradaram a UE as condicionalidades do Mercosul à denominação de origem pedida pelos europeus, sua insistência em ter a prerrogativa de criar subsídios para empresas nacionais, inclusive compensatórios para produtos que são também incentivados pela UE. A conclusão de que a UE deve dar prioridade ao conteúdo e não ao prazo das negociações, a que chegaram os chanceleres do bloco europeu, praticamente sepulta a possibilidade de um entendimento a curto prazo. As discussões do Mercosul com os países que mais compram seus produtos - UE e EUA - só foram capazes, até agora, de produzir impasses.