Título: O inquietante resultado dos pleitos municipais
Autor: José Eli da Veiga
Fonte: Valor Econômico, 13/10/2004, Opinião, p. A-9

A dinâmica política de duas dezenas de democracias maduras, cuja lista alfabética vai da Alemanha à Suíça, é de competição entre direita e esquerda pela atração de forças nesse atoleiro chamado "centro". Onde há muitos partidos nacionais, o jogo sempre coloca conservadores e liberais no pólo contrário ao formado por socialistas e social-democratas. Onde o sistema eleitoral impõe camisa-de-força bipartidária, como na Grã-Bretanha ou nos Estados Unidos, a disputa pela sedução dos "centristas" é mais endógena. Nem por disso deixa de ser tão decisiva quanto em países latinos da Europa, por exemplo. Claro, para que esse raciocínio não fique simplista, é preciso lembrar que a oposição entre os ideários da direita e da esquerda não é discreta, como a que distingue o círculo do retângulo. Parte essencial desse contraditório é penumbra, ou zona cinzenta, como em inúmeros outros valores humanos. Tão fácil quanto identificar características não-democráticas em qualquer dessas democracias maduras, como a Suíça, é apontar traços democráticos em situações de ditadura, como a de Cuba. O que não autoriza, contudo, que se negue a radical diferença entre democracia e ditadura. Da mesma forma, o trabalhismo não deixará de representar a esquerda britânica porque o governo Blair mergulhou de cabeça na barbárie iraquiana. E o petismo não deixará de concentrar a esquerda brasileira pelo fato de agora estar ligado ao malufismo. O que realmente diferencia o atual jogo político brasileiro daquele que caracteriza as democracias maduras é o fato de a principal disputa não se dar entre esquerda e direita pela sedução do centro, mas sim entre socialistas e social-democratas pela busca de mais apoios entre fragmentos e estilhaços de uma direita desunida e desorientada. Por ser governo, o PT facilmente atrai direitistas mais tendentes à fisiologia, enquanto o PSDB se dá melhor com direitistas mais programáticos ou doutrinários. E como nada indica que isso mudará no curto prazo, é compreensível que até se especule sobre uma imaginária tendência ao bipartidarismo entre petistas e tucanos. Todavia, é altamente improvável que a direita brasileira não venha a se rearticular, mostrando o caráter passageiro e ilusório das circunstâncias que atualmente ensejam polarização entre socialistas e social-democratas. Assim, mesmo que pareça impossível, é de fundamental importância que os quadros mais responsáveis do PT e do PSDB não dinamitem as pontes que ainda restam. Que tentem pensar com serenidade em propostas como a que aqui foi formulada há dois dias pelo economista Fabio Giambiagi. E que meditem na relação que pode existir entre os recentes desempenhos desenvolvimentistas da Espanha e do Chile com as posições adotadas pelos socialistas e social-democratas daqueles dois países na seqüência das respectivas redemocratizações. Será péssimo para o desenvolvimento do Brasil que PT e PSDB só comecem a trocar figurinhas e bater bola quando já estiverem ameaçados pela ressurreição da direita. E só duvida que isso acontecerá quem já esqueceu, ou sequer aprendeu, a lição passada por Norberto Bobbio em livrinho lançado há dez anos, e que não foi apenas um surpreendente best-seller, mas sobretudo um "long-seller", como diz seu editor, Carmine Donzelli, em nota introdutória à edição de fevereiro de 2004 de "Destra e Sinistra: ragioni e significati di uma distinzione política".

Será péssimo para o Brasil que PT e PSDB só comecem a trocar figurinhas e bater bola quando estiverem ameaçados pela ressurreição da direita

A reestruturação da direita brasileira certamente demorará se persistirem as condições objetivas que impedem a esquerda de levar adiante a essência de seu projeto: a redução das desigualdades. Uma vez no governo, tucanos e petistas foram obrigados a se limitar à estabilidade monetária acompanhada de políticas sociais paliativas. E, quando possível, algum crescimento com tímida redução da pobreza. Mas não houve nos dois mandatos de FHC, e certamente não haverá no atual mandato de Lula, qualquer brecha para o combate às desigualdades. Ou seja, a esquerda tem que se contentar com o programa de uma direita que ficou sem condições de tocá-lo por ter se comprometido em passado recente com a desastrosa supressão de liberdades fundamentais em 20 anos de ditadura militar. No Brasil de hoje, as mulheres ganham pouco mais da metade do que os homens, enquanto na Itália essa relação chega a 91%, e na França, 99,6%. Os negros que conseguem trabalho também ganham pouco mais da metade do que ganham os brancos, enquanto nos Estados Unidos essa proporção é de 80%. Não chega a 30% a participação dos ocupados que possuem contrato formal de trabalho, enquanto no conjunto dos países da OCDE ela atinge 65%. Em desigualdade de renda interpessoal, o Brasil só é superado por dois países: Costa do Marfim e Suazilândia. E, no entanto, há por aqui enorme dependência da tributação sobre bens e serviços, e uma das mais notórias incapacidades de tributar rendas e patrimônio. A esquerda deverá tentar alterar esse quadro, sob pena de desmoralização histórica. E aí verá como as bases sociais da direita revigorarão seus atuais companheiros de viagem dissimulados sob etiquetas liberais, populares, democráticas, e até trabalhistas. Enfim, por mais convincentes que sejam as explicações sobre os motivos do confronto polarizado por PT e PSDB, elas não podem impedir que se reconheça nesse jogo partidário-eleitoral uma propensão contrária à que prevalece nas nações que conseguiram se democratizar e se desenvolver. De resto, graves tragédias do século XX foram causadas pela incapacidade de formações socialistas e social-democratas se entenderem. Só pode ser preocupante, portanto, que os resultados das eleições municipais incitem petistas e tucanos a acirrar ainda mais suas hostilidades.