Título: Alta da Selic pode levar a retração maior
Autor: Sergio Lamucci
Fonte: Valor Econômico, 02/05/2005, RUMOS DA ECONOMIA, p. F4

A economia brasileira caminha para mais uma vez surpreender os analistas. Contrariando as previsões do começo do ano, a balança comercial bate recorde após recorde, devido ao resultado das exportações, e a demanda doméstica dá sinais de uma desaceleração mais forte, tendência que corre o risco de se acentuar em decorrência dos juros elevados. A dúvida é se o desempenho do setor externo vai ser suficiente para compensar o ritmo mais fraco da atividade interna e garantir um crescimento de 3,5% a 4% do PIB - os mais cautelosos já projetam expansão de 3%. Para complicar, uma inconsistência macroeconômica preocupa economistas como José Roberto Mendonça de Barros, ex-secretário-executivo da Câmara de Comércio Exterior (Camex). Um dos grandes problemas, segundo ele, é que a política fiscal e a monetária têm se mostrado incompatíveis, fruto da combinação de um governo gastador, que não pára de aumentar as despesas, e de um Banco Central (BC) ortodoxo, que não cessa de elevar os juros ao perseguir uma meta de inflação tida como inatingível. Depois do crescimento de 5,2% do ano passado, uma desaceleração já era esperada em 2005, em virtude de uma acomodação natural da atividade e do aperto monetário promovido a partir de setembro. A questão é que a perda de fôlego parece mais forte do que se imaginava, e a intensidade e a duração do aperto monetário podem piorar esse quadro. O ex-diretor de política monetária do BC Luiz Fernando Figueiredo, sócio da Mauá Investimentos, aponta vários sinais de que a economia cresce a um ritmo mais modesto, como a produção industrial. O indicador caiu 0,6% em janeiro em relação ao mês anterior, e recuou mais 1,2% em fevereiro. Outro sinal importante é o desempenho das importações, que passaram a crescer a uma velocidade mais fraca. Nas quatro primeiras semanas de abril, aumentaram 10,4% em comparação com o mesmo período de 2004. As exportações, por sua vez, cresceram 39%. Essa desaceleração já reflete, na visão de Figueiredo, o ciclo de alta da Selic iniciado em setembro. Mas boa parte do aperto monetário dos últimos meses ainda vai produzir efeito daqui para frente, adverte, uma vez que a política monetária age com defasagem sobre a atividade econômica e a inflação. Para Figueiredo, o país deve crescer 3% em 2005, mesmo com o desempenho acima do esperado das exportações. Em resumo, a política monetária já faz estragos. Para Mendonça de Barros, um dos nós do problema é a obsessão do BC com a meta de inflação de 5,1%, tida por ele como ambiciosa. Para tentar cumprir o alvo, o BC elevou a Selic de 16% para 19,5% ao ano, levando os juros reais para 12,8%. Ele prevê um crescimento de 3,5% em 2005, mas com "viés de baixa". Para piorar, a política fiscal tem um caráter expansionista, diz ele, ainda que a meta de superávit primário, de 4,25% do PIB, deva ser cumprida sem maiores dificuldades. O problema é que os gastos crescem com força. Em janeiro e fevereiro, as despesas do governo federal aumentaram 10,8% em relação ao mesmo período de 2004, em termos reais. Num momento em que o BC tenta segurar a demanda, o governo vai na direção contrária, nota o ex-presidente do BC Gustavo Loyola, sócio da Tendências Consultoria Integrada. Isso não quer dizer que Mendonça de Barros e Loyola estejam colocando a culpa dos juros altos nos ombros da política fiscal. É um fator que atrapalha, mas que está longe de explicar o nível das taxas no Brasil. O primeiro insiste que o principal problema é a meta de 5,1%. Para ele, a inflação vai ficar em 6,3% neste ano, acima do alvo, mas abaixo do teto de 7%. É um bom resultado, para a maior parte dos analistas, levando em conta que estão em curso vários choques de oferta, como a alta do petróleo e de outras commodities, a estiagem no Sul do país e os aumentos acima do esperado das tarifas de energia elétrica. No momento, não há pressões de demanda. Mesmo o ortodoxo Loyola diz que é difícil responder com certeza que os juros estariam mais baixos se a política fiscal fosse contracionista. "A resposta é talvez", afirma ele. Loyola prefere ressaltar outro ponto: a dificuldade em reduzir a inflação no Brasil abaixo de determinados níveis, devido ao grau de indexação que continua a haver na economia. A indexação, para Loyola, não se limita à correção de tarifas públicas aos índices gerais de preços (IGPs). Ela está presente no fato de que contratos com mais de um ano incluem cláusulas de indexação ou nos reajustes anuais previstos para o salário mínimo. "A inflação passada no Brasil é um indicativo mais forte da inflação futura do que em outros países", diz Loyola. Para reduzi-la para um determinado nível, são necessários juros maiores do que se a indexação fosse menor ou não existisse. A moral da história, para muitos analistas, é que definir metas de inflação muito baixas também é inconsistente. Mendonça de Barros diz que essa é a "mãe de todos os erros". Os juros têm acentuado a valorização do câmbio, pois o país recebe um fluxo significativo de recursos interessados em aproveitar o diferencial entre as taxas internas e externas. Como o fluxo comercial também é forte, o dólar tem se mantido abaixo de R$ 2,60, num cenário em que o BC não intervém no mercado. O câmbio, porém, não tem prejudicado a balança comercial. O desempenho do setor externo é a boa notícia do ano, como diz o professor Caio Prates, do grupo de conjuntura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). As exportações continuam a crescer com força, levando os analistas a rever as projeções para o saldo comercial. Prates já prevê um superávit de US$ 38,7 bilhões, acima dos US$ 33,7 bilhões em 2004. Para os analistas, o aumento das exportações se deve principalmente à expansão da economia global. A desaceleração do ritmo de crescimento do mundo tem sido mais lento do que se imaginava, garantindo uma boa demanda pelos produtos brasileiros. O FMI prevê expansão global de 4,3% em 2005, um número ainda respeitável, ainda que inferior aos 5,1% do ano passado. Por enquanto, os temores de menor crescimento do mundo, que apareceram nas últimas semanas, não afetaram as previsões para a balança comercial. Nesse cenário, os economistas passaram a rever a contribuição do setor externo (a diferença entre exportações e importações) para o crescimento neste ano. Prates avaliava que ela seria nula em 2005, mas considera possível que o setor externo seja responsável por 1 ponto percentual do crescimento de 4% que ele prevê para este ano. A demanda doméstica deve ser responsável pelos outros 3 pontos. Para ele, o setor externo deve compensar o desempenho pior da atividade interna. E Prates traça um quadro menos pessimista para a demanda doméstica que Figueiredo, por exemplo. Segundo ele, o que está em curso na indústria é uma interrupção temporária do crescimento. Prates lembra que a expansão tem sido "favorecida pela recuperação da massa salarial e pela firme expansão do crédito", a despeito da alta da Selic. O crescimento das operações de crédito com desconto em folha de pagamento é a grande novidade do setor. Com juros mais baixos - de 37% ao ano, metade dos do crédito pessoal -, os empréstimos consignados aumentaram 137% entre janeiro de 2004 e março de 2005, atingindo R$ 15,421 bilhões. Esse desempenho se contrapõe em parte ao aperto monetário, por elevar a oferta de crédito num momento em que o BC tenta brecar esse processo. Os economistas estão divididos entre a visão mais otimista de Prates e a mais pessimista de Mendonça de Barros e Figueiredo. Ao que tudo indica, a duração do aperto monetário vai definir quem está certo. O Brasil já mostrou que consegue crescer com juros altos. O ponto é saber se há gás suficiente para avançar mesmo com taxas reais de 12,8%. Se mantidas por muito tempo, os estragos na atividade econômica e na disposição dos empresários de investir não vão ser desprezíveis.