Título: Eficácia frágil do juro alto exige mudança na âncora
Autor: Luiz Sérgio Guimarães
Fonte: Valor Econômico, 02/05/2005, RUMOS DA ECONOMIA, p. F5

A inflação desafia o regime de metas inflacionárias mesmo depois de um aperto monetário vigoroso e continuado. Nos últimos oito meses, o Banco Central elevou o juro básico da economia de 16% para 19,50% ao ao. No mesmo período, as expectativas de IPCA do mercado subiram de 5,57% para 6,15%, afastando-se ainda mais da meta ajustada para o ano, de 5,1%. O aperto monetário, que custou aos cofres públicos cerca de R$ 35 bilhões - um dispêndio adicional superior aos gastos com a rubrica Saúde, de R$ 32 bilhões, ao longo de todo o ano de 2004 -, não está dando certo, embora já tenha desaquecido a economia. Os sinais vindos da produção industrial, das vendas comerciais, do emprego e da renda informam que o arrocho monetário está conseguindo esfriar a economia, mas ainda sem provocar impactos nem sobre a inflação corrente, nem sobre as expectativas do mercado. Esse descompasso é hoje o tema central das inquietações dos analistas. Não se pensa em trocar de âncora. A meta definida pelo governo constitui uma "âncora nominal" contra a inflação. Ela substituiu outra âncora, a do câmbio fixo, que perdurou de 1994 a 1999. Está completamente fora de moda a âncora do tipo monetarista, o controle de expansão de algum agregado monetário, responsável, no passado, por severas recessões nos EUA. Há vários diagnósticos sobre a baixa eficiência atual da política monetária. E variadas sugestões de como melhorar o sistema de metas. Mas é consensual que o governo não pode deixá-lo como está. Algo precisa ser feito. Alguns fatores comprometem a contundência do ciclo de alta da Selic. A impressão unânime é de que o BC precisou nos últimos meses elevar o juro a um patamar mais alto do que o necessário porque surgiram poderosas forças de resistência. A maior delas: a esquizofrenia do governo Lula. Há nele duas caras, e elas se entreolham com mal-disfarçado desprezo. A face neoliberal defende o juro alto, o câmbio flutuante e o elevado superávit fiscal. A desenvolvimentista oferece linhas do BNDES a 9,75% ao ano (o custo da TJLP), proporciona microcrédito e crédito consignado (desconto em folha) e amplia o custeio da máquina federal. A economia brasileira é um carro acelerado andando com o freio de mão puxado. A segunda: a indexação de contratos de tarifas públicas e aluguéis à inflação velha. A terceira: a descoordenação entre políticas, que impede a acomodação de choques de oferta. A quarta: se há uma mínima possibilidade, referendada pelo crédito, de repasse de custos aos preços é justamente isso que as empresas fazem. Inclusive o repasse da ampliação dos custos financeiros resultante do próprio ciclo de aperto monetário. "As empresas que compram à vista e vendem a prazo passam para a frente a elevação do custo do capital de giro", diz o economista Alex Agostini, da consultoria GRC Visão. O professor de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), João Sicsú, diz que o juro alto sempre funciona contra a inflação, seja ela de demanda ou de custos (baixa oferta). Seu efeito pode demorar dependendo das resistências, mas é sempre devastador, por isso nunca deveria ser utilizado. O aperto promove o esfriamento da economia. Antes do resfriamento vem o desemprego e a perda de renda. Quando isso ocorre, não há como repassar custos. A distorção básica do atual regime de metas inflacionárias são os preços administrados corrigidos por índices de inflação passados - os IGPs - extremamente voláteis e sensíveis. Siczú defende o fim, por dispositivo de lei, de qualquer forma de indexação de preços à inflação passada. Aprovada a lei, os novos contratos e os velhos que forem vencendo nas áreas de energia elétrica, telefonia e aluguéis teriam de se submeter a elas. Apenas o fim da indexação quebra a inércia inflacionária. A legislação deveria impor critérios à correção de preços públicos, como as passagens de ônibus, hoje submetidas a critérios políticos. Prefeitos podem hoje represar politicamente tarifas e descomprimi-las de surpresa a qualquer tempo. Outro defeito enxergado por analistas, empresários e políticos é aparentemente inoperável, dada a intransigência do BC: a fixação de metas de inflação consideradas irrealistas. Mesmo ajustada de 4,5% para 5,1%, com teto de 7%, o alvo para 2005 parece ambicioso demais. Elevar a meta de inflação pode não ser a melhor opção, tanto no entender de Sicsú quanto de Agostini. Sicsú lembra que a meta compõe junto com o risco Brasil e o spread do BNDES o cálculo para fixação da TJLP. Aumentar a meta significaria elevar a taxa de juros longa, na qual muitas empresas se socorrem hoje para ampliar a produção e conseqüentemente a oferta, contribuindo para a queda da inflação no médio e longo prazos. Para Agostini, os agentes econômicos iriam buscar rapidamente a nova meta mais elevada. Ele sugere a adoção de metas centrais longas e flexíveis. O piso e o teto permaneceriam fixos, indefinidamente, digamos em 2% e 7%, respectivamente. O centro, sempre tendo-se uma mira 12 meses adiante, teria flutuação revista a cada três meses pelo CMN. Ao invés de subir o juro, o centro flexível se deslocaria para um degrau mais elevado até a turbulência passar. Agostini defende a mudança do indicador que baliza a meta oficial. Metodologicamente, seria muito simples criar um IPCA de preços livres, os que de fato acusam os golpes altistas da política monetária. Cerca de 30% do índice se referem aos preços administrados. No ano passado, eles subiram 10,2%, contaminando o IPCA cheio, que acumulou alta de 7,6%. A reponderação do índice não teria caráter de expurgo, e sua defesa para quem esgrime as tecnicalidades da ata do Copom seria brincadeira de criança. Introdutor do regime de metas de inflação, em 1999, quando ocupava a diretoria de Política Econômica do Banco Central, Sérgio Werlang não tem dúvidas de que a política monetária funciona contra a inflação. A sua eficácia em derrubar os índices é absoluta quando se trata de desaquecer a demanda. Só que a inflação atual é de oferta. "É um erro o BC subir o juro para atacar uma inflação de oferta", diz Werlang, atual diretor-executivo do Itaú. Após cinco anos de vigência da âncora antiinflação configurada pelas metas, Werlang argumenta que está na hora de introduzir aperfeiçoamentos no sistema. Ele defende a implantação, para início de vigência em 2007, da "meta rotativa" de inflação. Seria fixada uma taxa de 4,5%, com margem de flutuação para cima ou para baixo de 2,5%, com validade permanente, vigiada com base no IPCA dos 12 meses anteriores. Se o índice não se enquadra na meta, o BC agirá, mas sem preocupação com o ano-calendário. O executivo defende também a publicação de todos os modelos econômicos, econométricos e estatísticos utilizados pelo BC para prever a inflação. Isso traria transparência às decisões do Copom. No mesmo sentido, ele sugere ao Copom a publicação nominal de cada voto dos seus integrantes. Quem votou em qual taxa e por quê. Para Werlang, o Copom se enriqueceria se admitisse assento e voto a pessoas de fora do BC, basicamente acadêmicos sem conflito de interesses profissionais. A busca da transparência máxima é um dos segredos da âncora.