Título: Dificuldades para manter o superávit primário
Autor: Mônica Izaguirre
Fonte: Valor Econômico, 02/05/2005, RUMOS DA ECONOMIA, p. F8

O governo Lula tem demonstrado compromisso com a defesa da responsabilidade fiscal e a obtenção de expressivos superávits na contas primárias (sem juros) do setor público. A despeito da determinação da equipe econômica, porém, persistem dúvidas sobre a sustentabilidade da atual política fiscal, em especial do nível de superávit primário estabelecido como piso. Diante do crescimento das despesas correntes do governo federal, sem medidas mais duras, será cada vez mais difícil garantir um superávit anual de 4,25% do Produto Interno Bruto, alerta o economista Raul Velloso, um dos mais reconhecidos especialistas brasileiros em finanças públicas. No projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2006, enviado ao Congresso, o governo propôs limitar em 17% do PIB as dotações para despesas primárias correntes no próximo orçamento da União, teto que cairia a partir de 2007. Mas como garantir que a determinação será cumprida, na prática, se as despesas que mais pesam são aquelas que o governo não tem poder de cortar nem mesmo de limitar, questiona Velloso, referindo-se à folha de pessoal e encargos, aos benefícios da Previdência Social e aos benefícios assistenciais obrigatórios. Se nada mais for feito, explica ele, esses três itens, que representam a maior parte das despesas correntes, " vão continuar crescendo autônoma e automaticamente " . Então, " sem medidas concretas " , capazes de reduzir ou ao menos congelar esses gastos, o teto previsto no projeto de LDO não é factível, pelo menos não durante muito tempo, acredita Velloso. O governo pode até querer compensar a impossibilidade de cortar gastos obrigatórios comprimindo os discricionários. O problema é que as não-obrigatórias, estimadas em 3,02% do PIB, representam muito pouco no universo total despesas primárias correntes, estimado em 17,18% do produto para 2005. O que mais preocupa são as despesas com benefícios previdenciários e assistenciais. Além de crescer de forma autônoma pela ampliação do número de beneficiários, elas também crescem automaticamente por estar atreladas ao salário mínimo. E o governo Lula já deixou claro que sua política em relação ao salário mínimo continuará sendo a de conceder aumentos reais, acima da inflação. Uma nota técnica produzida recentemente pela Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados mostra que, em cinco anos, as despesas correntes do governo federal atreladas ao salário mínimo pularam de 6,63% (nível de 2002) para 8,33% do PIB (nível previsto para 2005). Parte desse total, só os benefícios pagos pela Previdência cresceram de 5,88% para 7,3% do PIB. Os benefícios pagos no cumprimento da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) tiveram um crescimento ainda mais expressivo, pois mais que dobraram, passando de 0,18% para 0,39% do PIB. O volume dos demais benefícios vinculados ao salário mínimo, como abono e seguro desemprego, também aumentou. Velloso alerta que a situação ficou ainda mais preocupante depois que a comissão de Constituição de Justiça da Câmara dos Deputados aprovou um projeto para ampliar o público beneficiado pela LOAS, generosidade que poderá custar R$ 7 bilhões a mais por ano aos cofres da União, pelos cálculos do governo. Pelos cálculos do Congresso, que usou outros parâmetros, o impacto seria maior, alcançando R$ 26 bilhões por ano. Depois de 2002, ano em que chegaram a um pico de 5,5% do PIB, as despesas de pessoal da União não voltaram a aumentar como proporção do PIB. Ao contrário, caíram para 5,01% do produto em 2004. Mas, diante da " frouxidão " da política de contratações e de reajustes salariais para o funcionalismo, diz Raul Velloso, a folha de pessoal também é fonte de dúvida sobre a sustentabilidade do superávit primário. O sentimento de que um superávit primário 4,25% do PIB não será sustentável por muito tempo é compartilhado pelo mercado financeiro, confirma o economista Alexandre Póvoa, diretor da empresa de administração de ativos de terceiros do Banco Modal. A origem da desconfiança, diz ele, está na péssima qualidade do ajuste fiscal brasileiro, construído a partir da elevação de receitas e não do corte de despesas. Combinado com o crescimento autônomo e automático de despesas correntes, o fato de a sociedade ter demonstrado que não tolera mais crescimento de carga tributária coloca em xeque a capacidade do governo de garantir o piso fixado para o resultado primário das contas do setor público. O próprio governo reconhece que não há mais espaço para elevação da carga de tributos . Tanto que, no projeto de LDO 2006, propôs limitar em 16% do PIB a estimativa de arrecadação de receitas administradas pela Secretaria da Receita Federal a constar nos próximos orçamentos. Raul Velloso acredita que o problema da fragilidade do superávit primário do setor público brasileiro vai estourar nos primeiros anos do próximo governo. Então, para evitar isso, ele aconselha medidas impopulares, como botar um freio nos benefícios da LOAS e retirar do quadro de servidores estáveis da União todas aquelas carreiras que não sejam típicas de Estado. Raul Velloso e Alexandre Póvoa levantam dúvidas sobre a suficiência do piso de superávit primário fixado pelo governo. Mesmo que venha a se revelar sustentável, 4,25% do PIB é um patamar suficiente apenas " para tempos de paz " , diz Velloso. Se houver turbulência nos mercados em função da esperada piora no cenário internacional e câmbio e juros tiverem que subir, será necessário, na sua opinião, um superávit maior. Póvoa concorda. Pelos seus cálculos, mesmo nas condições atuais, um superávit primário de 4,25% do PIB é suficiente apenas para evitar crescimento da dívida líquida do setor público como proporção do PIB, na casa dos 52%.