Título: Políticas cambial, monetária e fiscal vivem contradições
Autor: Luiz Gonzaga Belluzzo
Fonte: Valor Econômico, 02/05/2005, RUMOS DA ECONOMIA, p. F14

Entre 2003 e 2004 a economia brasileira empreendeu uma respeitável redução de sua vulnerabilidade externa. A balança comercial foi (e continua sendo) a "estrela" dessa façanha. Mantidos os estímulos da conjuntura internacional benfazeja, o superávit na conta de mercadorias pode ultrapassar em 2005 os US$ 33 bilhões de 2004 e, assim, produzir um novo superávit em conta corrente. A elevação dos preços das commodities e o crescimento das exportações de manufaturados para novos mercados permitiram que o saldo comercial se ampliasse, mesmo com crescimento das importações. Estes resultados animaram alguns analistas a clamar pela entronização do país na categoria de "investment grade". É prudente não exasperar as pretensões quando a conjuntura internacional se apresenta excepcionalmente favorável. A euforia costuma provocar o descuido. Neste momento, as autoridades, acossadas pelo choque de preços das commodities e bafejadas pelo surto de liquidez internacional, não trepidam em elevar os juros básicos, "apreciar" o câmbio e utilizar a valorização da moeda nacional como instrumento de combate à inflação. As experiências mais bem-sucedidas na era da globalização parecem indicar que a defesa da taxa de câmbio real, os superávits em conta corrente e a acumulação de reservas elevadas tornaram-se cruciais num mundo de grande mobilidade de capitais. As reservas elevadas garantem o atendimento da demanda por liquidez em moeda forte e, assim, asseguram a estabilidade da taxa de câmbio, o controle da inflação e taxas de juros moderadas para a expansão do crédito doméstico. Mas a visão convencional e dominante no Brasil trata de fazer vista grossa para o sucesso alheio. Prefere a macroeconomia das contradições, marca registrada das relações entre as políticas cambial, monetária e fiscal, engendradas nos países que embarcaram na onda da abertura financeira dos anos 90. No Brasil, entre 1994 e 1997, a entrada líquida de capitais promoveu concomitantemente a valorização do real, a expansão do passivo externo e das reservas do Bacen, cuja política de esterilização monetária com juros estratosféricos, levou à explosão da dívida pública interna. Quando, nos idos de 1998, ocorreu o inevitável ataque especulativo, a saída líquida de divisas e a queda das reservas foram acompanhada da elevação dos juros e "dolarização" do débito público, o que encareceu o serviço da dívida e determinou o rápido crescimento da relação dívida/PIB.

A "incerteza" cambial compromete a capacidade exportadora da economia a longo prazo

As relações perversas entre política monetária, cambial e fiscal não se modificaram substancialmente com a adoção do regime flutuante. Num ambiente em que prevalecem a abertura financeira, passivo externo líquido alentado e reservas ainda modestas, o Banco Central continua obrigado a intervir no mercado cambial, se deseja impedir que o câmbio flutuante exagere as flutuações ao sabor das marés de liquidez internacional. Estas se alternam entre a generosidade excessiva, como neste momento, e a mesquinhez assustadora. Na economia brasileira, é alta a sensibilidade dos preços dos bens comercializáveis a choques externos e, ademais, o sistema de preços está contaminado pela indexação das tarifas de serviços públicos. Por isso, as desvalorizações cambiais são danosas do ponto de vista inflacionário. As valorizações, de outra parte, inibem a formação de expectativas favoráveis ao investimento produtivo, nacional ou estrangeiro, destinado às exportações ou a concorrer com as importações. A "incerteza" cambial, além de comprometer a capacidade exportadora da economia a longo prazo , afeta as decisões dos possuidores de riqueza que estão constantemente avaliando as vantagens de manter seus haveres financeiros em reais ou em dólares. Diante da gangorra cambial e das preocupações com a inflação, o BC teme desrespeitar o piso para a taxa de juro real, imaginado como suficiente para manter o interesse dos possuidores de riqueza nos títulos públicos denominados em moeda local. Os títulos de riqueza em reais e os denominados em dólares são substitutos muito imperfeitos, o que impede a convergência entre juros internos e externos. Ao contrário do que diz a teoria convencional - de que o câmbio flutuante daria maior autonomia às políticas monetária e fiscal -, tal autonomia não se verifica em países afetados por endividamentos externo e interno elevados, mesmo quando é possível reduzir de forma significativa o déficit em conta corrente. Em tais circunstâncias, a relação dívida/PIB - adotada como meta junto ao Fundo Monetário Internacional - acusa imediatamente os efeitos da elevação das taxas de juros, por conta da indexação de uma fração importante dos títulos à Selic. Sua redução, com juros altos, crescimento medíocre exige sempre superávits primários fiscais elevados e o encolhimento relativo, quando não absoluto, dos gastos sociais e do investimento público. No âmbito da política fiscal as relações contraditórias se exprimem de forma inequívoca: 1) um aumento da carga fiscal de 22% para 34% do PIB; 2) uma elevação da dívida pública mobiliária (de cerca de 20% em 1994 para cerca de 54% do PIB, hoje); 3) uma redução do gasto público produtivo e uma expansão insuficiente dos gastos sociais, que mal recuperaram os níveis dos anos 80. Em compensação, as despesas com juros cresceram rapidamente e alcançaram 7% do PIB. Na verdade, o gasto público econômico e social como proporção do PIB caiu, com uma carga tributária muito maior, que incide, sobretudo na base da sociedade e na classe média assalariada. A política fiscal tem sido nitidamente regressiva e os sucessivos ajustes fiscais sequer permitem políticas compensatórias para atender à situação de desemprego e de carência social.