Título: Brasil tenta ganhar espaço e joga fichas na Rodada de Doha
Autor: Assis Moreira
Fonte: Valor Econômico, 02/05/2005, RUMOS DA ECONOMIA, p. F17

A rodada de negociações para liberalizar o comércio internacional de bens e serviços pelos próximos 20 anos prossegue em ritmo lento na Organização Mundial do Comércio (OMC). Oficialmente, o objetivo é concluir a chamada Rodada de Doha até 2006. Mas ninguém se arrisca a apostar nesse prazo. Para o Brasil, que tem pressa e considera a OMC seu principal tabuleiro de negociação, a questão é até quando vale a pena esperar a conclusão da Rodada de Doha para então avançar nas negociações Mercosul-União Européia e na Área de Livre Comércio das Américas (Alca), que dariam acesso preferencial nos dois maiores mercados do planeta. Na OMC, os obstáculos a serem superados são enormes. Muito trabalho técnico precisa ser feito, e muita barganha terá ainda de ser colocada na mesa para os 148 países chegarem a algum consenso. Mas, sobretudo, falta o ímpeto político que a União Européia e os Estados Unidos demonstraram na negociação anterior, a Rodada Uruguai (1986-1995). Na Rodada Uruguai, os países industrializados puderam incorporar na OMC regras sobre serviços e propriedade intelectual, refletindo mudanças na economia global. Na Rodada Doha, a demanda principal é por abertura agrícola e vem de países emergentes como o Brasil para que essa negociação tenha uma dimensão realmente de desenvolvimento. Além disso, esses países querem recuperar espaço para adotar políticas nacionais de desenvolvimento que alegam terem perdido pelas atuais regras da OMC. Mas há em algumas partes da Europa, por exemplo, o sentimento de que o preço político a pagar por um acordo na OMC pode ser bem maior do que as vantagens, e será difícil vendê-lo internamente. Os EUA tampouco mostram disposição de cortar significativamente os subsídios dados a seus agricultores. E ambos não querem nem ouvir falar em reativar regras para promover o crescimento de certas indústrias por meio de exigências de desempenho exportador ou de conteúdo local. Europeus e americanos fazem quase 40% do comércio mundial. Eles já não podem ditar os resultados dos acordos comerciais como no passado. Mas tampouco há compromisso sem o engajamento sério de Bruxelas e de Washington. No momento, as atenções na OMC estão voltadas para a escolha do novo diretor-geral da entidade. As negociações prosseguem em diversos comitês especiais, mas não avançam. E não se pode descartar um novo fiasco em julho próximo na OMC, jogando mais sombras nos projetos de liberalização rápida. É que os prazos para definir modalidades em agricultura e produtos industriais até julho "já foram para o espaço'', na expressão de certos negociadores. As modalidades definem como serão feitos os cortes de tarifas e de subsídios. A idéia era conseguir fórmulas para os cortes até meados do ano e se tentar colocar os percentuais de redução até dezembro. Assim, ao final do ano, os países teriam uma idéia clara dos ganhos na rodada. Mas os bloqueios persistem. O principal exemplo é a agricultura, central para o sucesso ou não da Rodada Doha. Para se definir uma formula de redução tarifária, é preciso antes fazer a conversão de mais de 30 mil "tarifas especificas'' em "tarifas ad valorem". As primeiras são expressas em valor monetário, em dólar por tonelada, por exemplo. Ora, para serem reduzidas, é necessário fazer a equivalência em "ad valorem", por percentual do preço. O que deveria ser apenas uma discussão técnica já dura quatro meses, inclusive porque a União Européia recuou em acordo que aceitara antes. Ao mesmo tempo, a própria União Européia e os outros blocos industrializados pressionam países emergentes como Brasil, Índia, Malásia, Indonésia a fazerem concessões na área industrial e em serviços. O Brasil e Índia defendem uma fórmula não-linear para produtos industriais, que não arranque toda a proteção de setores ainda não suficientemente maduros para afrontar a concorrência externa. Brasília acena com barganha: tem margem para cortar tarifas industriais, desde que tenha ganhos importantes em agricultura. Também quer a revisão do Acordo Antidumping para evitar abusos na aplicação de sobretaxas em exportações de aço, por exemplo, que são normalmente alvejadas nos EUA e União Européia. No entanto, as dificuldades para um acordo na OMC vão bem além de agricultura e produtos industriais. O tema que causa provavelmente mais emotividade na organização é o de indicações geográficas. A União Européia quer negociar a extensão de proteção de indicações geográficas para produtos como queijos, cervejas, arroz, café, entre outros produtos. Bruxelas insiste que precisa obter algo nesse setor, como uma das barganhas na redução de seus bilionários subsídios agrícolas. O problema é que, se houver extensão de proteção, um produtor brasileiro de parmesão, por exemplo, não poderá sequer pagar "royalties" para usar essa expressão, e sim mudar a apelação. E os Estados Unidos, Austrália, Argentina, Brasil e outros países do chamado "novo mundo" não querem nem ouvir falar dessa questão. Um dos vice-diretores da OMC, o brasileiro Francisco Thompson-Flores, é o mediador dessa negociação. Recentemente, o clima esquentou quando o embaixador da Austrália, David Spencer, passou a reclamar com Thompson-Flores, sobre o que ele deveria fazer ou não. O mediador brasileiro esperou o australiano terminar e, em seguida, retrucou: "Olhe, até aceito receber lições de golfe de você", disse. "Mas de diplomacia, francamente, de jeito nenhum."