Título: Disputa entre governos deve continuar
Autor: Mônica Izaguirre
Fonte: Valor Econômico, 02/05/2005, RUMOS DA ECONOMIA, p. F28

Esperada para as próximas semanas, a aprovação de mais uma etapa da reforma tributária pela Câmara dos Deputados está longe de acabar com os contenciosos entre a União e os Estados e municípios. Pelo menos três grandes questões continuarão a fomentar muito embate no médio prazo: a desoneração tributária das exportações, o índice de correção das dívidas estaduais e municipais junto ao Tesouro Nacional e os repasses do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef). Por trás de todas elas está uma disputa por recursos. Só a briga em torno do Fundef envolve cerca de R$ 5,2 bilhões por ano. Esse é, segundo o secretário da Fazenda da Bahia, Albérico Mascarenhas, o valor que a União vem deixando de repassar a Estados e municípios "em função do não cumprimento da lei que criou o fundo", afirma. É por intermédio do Fundef que a União ajuda a bancar os custos com a educação em escolas estaduais e municipais. Com base na fixação de um determinado valor mínimo por aluno, o governo federal dá uma complementação. Mascarenhas diz que, se a legislação fosse seguida, esse valor de referência deveria estar em R$ 912,00. Para 2005, entretanto, ele foi fixado em R$ 620,56 . "Para não ter que complementar, a União subestima o custo por aluno", reclama o secretário. Foto: Edson Ruiz/Valor

Alberico Mascarenhas, do Confaz: luta por repasses e correção das dívidas inclui ações no STF e mobilização no Congresso Fracassadas as tentativas de acordo entre os governos, a briga em torno do Fundef foi parar na Justiça. Cada Estado apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação pedindo a revisão do custo por aluno estipulado pelo Executivo federal. Nenhuma delas foi julgada até agora. Mas a expectativa dos Estados é de vitória, afirma Mascarenhas. Já a disputa em torno da mudança do indexador das dívidas estaduais e municipais deverá ter como principal arena o Congresso Nacional. Conforme Mascarenhas, os Estados vão se mobilizar pela aprovação de um projeto de lei que substitua o Índice Geral de Preços - Disponibilidade Interna (IGP-DI) pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) nos contratos de refinanciamento assinados com o Tesouro Nacional. "Esse é um pleito endossado pelos municípios", diz Mascarenhas. Entre as prefeituras, a mais interessada na mudança é a de São Paulo. Os governos dos Estados e das capitais devedoras alegam que o IGP-DI não serve para corrigir dívida interna por ser demasiadamente sensível às oscilações da taxa de câmbio. Mascarenhas lembra que foi justamente por causa do câmbio que o IGP-DI disparou na crise de 2002, fazendo subir os saldos devedores e deixando muitos Estados e municípios desenquadrados nos limites de relação dívida/receita. A equipe econômica do governo federal é contra a substituição. Entende que a troca de indexador significaria renegociar as dívidas, o que demandaria mexer na Lei de Responsabilidade Fiscal. Assim, a expectativa é de que haja muito resistência de setores governistas ao projeto defendido pelos Estados. Mais antiga, a briga em torno da conta da desoneração das exportações se arrasta desde 1996, quando a Lei Kandir isentou do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) a exportação de produtos primários e semi-elaborados. A venda de produtos industriais ao exterior já estava livre do ICMS desde a Constituição de 1988. Ao abranger os semi-elaborados, a Lei Kandir fez com que também fossem desoneradas as operações de aquisição de insumos para produção de mercadorias destinadas à exportação. Para compensar os Estados pelas perdas adicionais de receita de ICMS, a mesma lei determinou que a União ajudaria a bancar mais essa desoneração, repassando recursos. As perdas de receita de ICMS sobre os industrializados já vinham sendo compensadas pelo repasse de 10% da arrecadação do IPI, o imposto federal sobre esses produtos. Os Estados reclamam que as compensações da Lei Kandir vêm caindo nos últimos anos, ficando muito abaixo da média dos primeiros anos, que foi de 50% das perdas. Em 2004, por exemplo, para perdas calculadas em R$ 18 bilhões, eles receberam apenas R$ 4,3 bilhões, valor que sobe para R$ 6,45 bilhões se incluídos 10% sobre a arrecadação do IPI. Em fevereiro deste ano, o Ministério da Fazenda propôs uma mudança no modelo de desoneração. O foco da proposta, no entanto, não foi a compensação aos Estados e sim aos exportadores, que atualmente não conseguem uma desoneração completa, por dificuldade de aproveitar créditos tributários gerados nas operações de aquisição de insumos dentro do país. Para os Estados, a implementação da proposta da Fazenda não só não elevaria como ainda diminuiria o nível de compensação, em cerca de R$ 834,6 milhões por ano, pelos parâmetros de 2004. A mesma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que manda unificar as alíquotas e regras do ICMS, avançando, assim, na reforma tributária, também abre uma brecha para mudança do modelo de desoneração de exportações. Com a alteração feita pelo relator, deputado Virgílio Guimarães (PT-MG), o novo texto permite que União e Estados usem quaisquer impostos para constituir um fundo de ressarcimento aos exportadores. Se a nova versão da PEC for aprovada também pelo Senado, a disputa em torno da matéria será retomada na hora de regulamentar esse fundo. Afinal, será preciso definir, de uma vez por todas, como será dividida a conta da desoneração. A contraproposta dos Estados ao Ministério da Fazenda prevê que, nos primeiros anos, os exportadores receberão apenas 80% do ICMS pago. Dependendo do desenho, portanto, a desoneração pode continuar não sendo completa. O presidente da Confederação Nacional dos Municípios (CMN), Paulo Ziulkoski, coloca mais um item na lista de contenciosos com a União: a falta de regulamentação do artigo 23 da Constituição Federal, que estabelece as competências comuns à União aos Estados e aos municípios. Entre elas, constam saúde e assistência pública, proteção do meio ambiente e fomento à produção agropecuária. Ziulkoski lembra que, até hoje, não foi editada a lei complementar que deveria estabelecer as normas de cooperação entre os entes federados nessas áreas de competência comum. Essa "grave omissão", diz ele, tem sido um grande problema para os prefeitos. Na falta de definição do que cabe a quem, por estarem mais perto dos cidadãos, os governos municipais acabam sendo obrigados a atender a uma série de demandas da sociedade, sem receber recursos para tanto, reclama. Como exemplo, Ziulkoski cita a assistência médica pública. Os recursos repassados pela União, por intermédio do Sistema Único de Saúde (SUS), "não cobrem nem 30% do que as prefeituras gastam para dar esse atendimento à população", diz ele. Ainda segundo Ziulkoski, embora "não esteja escrito em lugar nenhum que isso seja uma obrigação das prefeituras", elas também têm bancado, na maioria das vezes sozinhas, a abertura e manutenção de estradas vicinais de acesso a áreas de produção agropecuária. "A estrutura federativa está capenga", critica o presidente da CNM, cobrando, inclusive do Congresso Nacional, uma iniciativa para regulamentar o artigo 23 da Carta Magna.